Quem está por trás do Batalhão de Azov, o grupo neonazista da Ucrânia na mira de Putin

POR Branko Marcetic / Tradução: Gercyane Oliveira

Atualizado em 1 de março de 2022 às 20:54
Em 2014, o jogo trapaceiro dos poderosos, a ira justa contra um status
quo corrupto e oportunistas de extrema direita derrubaram o governo
ucraniano. A crise de hoje não pode ser compreendida sem
entender as revoltas de Maidan - e o apoio de Washington.
Ucrânia Putin neonazista
Manifestantes jogam coquetéis molotov contra tropas ucranianas durante os protestos de Maidan em 19 de janeiro de 2014. (Mstyslav Chernov / Wikimedia Commons)

É janeiro. Uma multidão desafiadora de manifestantes, uma confusão onde os corpos de extremistas de direita se esfregam lado a lado a pessoas comuns e desejam a cabeça do presidente eleito. Eles cantam slogans antigoverno, ocupam prédios governamentais e carregam armas – alguns deles com armas improvisadas a tira colo, outros deles com rifles de caça e Kalashnikovs. Enquanto tudo é dito e feito, as manifestações levam à morte e à hospitalização tanto de manifestantes, como policiais.

Não é o tumulto do Capitólio em Washington, que horrorizou os norte-americanos e observadores estrangeiros em 2021. Esta foi a “Revolução de Maidan” (ou Euromaidan), que, há cerca de oito anos atrás, conseguiu derrubar o governo eleito do país, fazendo com que o então o presidente Viktor Yanukovych fugisse para a vizinha Rússia para salvar sua vida.

Após quase uma década, a a revolta que eclodiu em 2014 na Ucrânia, como se sabe, segue sendo um dos episódios mais incompreendidos ​​da história recente. Entretanto, entendê-lo é fundamental para compreender o impasse em curso na leste europeu, que pode ser rastreado até a atual polarização entre os EUA e a Rússia – dependendo a quem você perguntar, ele é uma inspiradora revolução liberal ou um golpe de extrema direita.

Grande poder para a rebelião

Tal qual o atual aumento das tensões entre a Rússia e a OTAN, no coração dos protestos da Maidan estava o impulso de alguns governos ocidentais, sobretudo os Estados Unidos, para isolar a Rússia, dando apoio à integração de partes periféricas da antiga União Soviética a instituições europeias e atlânticas – e a reação de Moscou contra aquilo que viu como uma invasão à sua esfera de influência.

Em 2014, o homem forçado a navegar nessas tensões, Viktor Yanukovych, sofreu sua segunda derrubada da presidência ucraniana. Ele havia sido deposto na Revolução Laranja de 2004, que se seguiu a acusações generalizadas de fraude na eleição que o levou ao poder. Antes de concorrer novamente 6 anos depois, Yanukovych havia trabalhado para reconstruir sua reputação, tornando-se o político mais confiável do país.

Até 2010, os observadores internacionais declararam sua eleição mais recente livre e justa, uma “demonstração impressionante” da democracia. Contudo, uma vez no poder, o governo Yanukovych esteve de novo marcado pela corrupção generalizada, autoritarismo e, para alguns, uma amizade desconfortável com Moscou, que não escondia seu apoio nessa eleição e na anterior. O fato de que a Ucrânia estava dividida entre uma parte ocidental e central mais amigável à Europa e uma parte oriental mais pró-Rússia – as mesmas linhas que, em grande medida, determinaram a eleição – só complicou tudo ainda mais.

Yanukovych se encontrava em uma posição difícil. A Ucrânia dependia de gás barato da Rússia, mas uma pluralidade do país – não, crucialmente, uma maioria absoluta – ainda almejava a integração europeia. Sua carreira política foi atada a esse mesmo vínculo: já que seu partido é formalmente aliado ao próprio Rússia Unida de Vladimir Putin, sua base pró-russa queria relações mais próximas com seu vizinho; mas os oligarcas que eram a verdadeira razão pela qual ele havia chegado próximo à presidência estavam financeiramente interconectados com o Ocidente e temiam perder o controle sobre o país a partir da fronteira russa. Enquanto isso, as duas potências geopolíticas – Washington e Moscou – esperavam usar essas clivagens para delinear o país sob suas respectivas órbitas de influência.

“Quase uma década depois, a Revolta de Maidan continua sendo um dos episódios mais amplamente incompreendidos da história recente.”

Assim, por quatro anos, Yanukovych caminhou em uma linha tênue. Ele agradou sua base com medidas simbólicas e culturais, como falar de unidade ou cooperação com Moscou em indústrias-chave – ainda que muito disso não tenha saído do papel – junto a passos mais sérios, como fazer do russo uma língua oficial, rejeitar a adesão da OTAN e reverter o movimento de seu predecessor de glorificar colaboradores nazistas como heróis nacionais nos currículos escolares.

Todavia, sua maior concessão para Moscou aconteceu no inicio de seu mandato, quando ele chegou a um acordo para permitir que a frota russa no Mar Negro usasse a Crimeia como base até 2042, em troca de gás russo barato. Sua aprovação apressada foi marcada por socos e bombas de fumaça no Parlamento ucraniano.

Para todas as acusações, na época e desde então de que ele era um fantoche de Kremlin, todavia, havia um teto rígido para o giro de Yanukovych para o leste. Sua postura não comprometida em se juntar a uma união alfandegária de ex-repúblicas soviéticas liderada pelos russos, mesmo quando Putin tornou o preço do gás ainda mais baratos, o que frustrou Moscou. Prova disso foi sua rejeição direta à proposta de Putin de fundir as respectivas estatais de gás de ambos os países, que efetivamente entregaria a Moscou o controle de oleodutos ucranianos que costumavam canalizar quase todas as suas exportações de gás para a Europa. Por sua vez, Moscou se recusou a renegociar o odiado contrato de gás unilateral de 2009, que havia sido assinado entre as duas partes pelo governo ucraniano anterior.

Enquanto isso, Yanukovych compactuava e incentivava publicamente o envolvimento ocidental na modernização da infraestrutura de gás natural da Ucrânia e insistia de novo e de novo que “a integração europeia é a prioridade-chave da nossa política externa”. Ele seguiu trabalhando pela adesão da União Europeia e, para esse objetivo, buscou um acordo de livre comércio com a UE, bem como o empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI) que o Ocidente o pressionava a tomar.

Essa linha de vida financeira vinha com um preço pesado familiar para os muitos países pobres que se dirigiam ao Ocidente buscando empréstimos: a eliminação de tarifas, congelamento de salários e aposentadorias, cortes de gastos e o fim dos subsídios ao gás para as famílias ucranianas. O potencial sombrio dessa austeridade imposta pelo Ocidente, mostrada para todos verem à época na Grécia, presumivelmente valeu para que Yanukovych mantivesse o nariz de Moscou longe de seus negócios.

Foi por isso tudo que a liberal Brookings Institution descreveu a política externa de Yanukovych como “mais nuançada” que suas inclinações pró-russas sugeriram a priori. Era também o que selaria seu destino.

Para impedir o movimento para o Ocidente, Putin performou um comportamento de bom e mau policial, que oferece a Yanukovych um empréstimo sem contrapartidas no mesmo valor que o do FMI, enquanto o apertava com o equivalente a um minibloqueio comercial. Com a UE não conseguindo oferecer qualquer coisa que compensasse a catastrófica perda do comércio com a Rússia temida pela Ucrânia, Yanukovych fez a escolha bem calculada de seguir com a oferta de Moscou. Em novembro, ele renegou abruptamente o acordo da UE, provocando os protestos que o derrubariam do poder.

Eixo de conveniência

Enquanto a rejeição do acordo foi a faísca – com manifestantes reclamando da “traição” e cantando “Ucrânia é a Europa” –, os protestos foram muito além. Como um residente Kiev contou à imprensa, “mesmo se o acordo for assinado agora, não vou deixar o protesto”.

Os manifestantes estavam fartos do nepotismo e da corrupção que permeavam a sociedade ucraniana – um dos filhos de Yanukovych é um dentista que, de alguma forma, se tornou um dos homens mais ricos do país, outro era um parlamentar – e também da natureza cada vez mais autoritária do governo Yanukovych. O outro ponto principal para o acordo era a demanda da Europa de que o líder rival de Yanukovych fosse libertado da prisão por falsas acusações, algo que ele resistiu.

A resposta de Yanukovych ao movimento foi condená-lo, primeiro, a uma brutal repressão em novembro que fez com que a polícia antimotim dispersasse violentamente os manifestantes na Maidan (ou Praça da Independência, em ucraniano) em Kiev, depois aprovando uma série de leis antiprotestos opressivas em janeiro. Ambos os movimentos apenas atraíram mais gente para participar das mobilizações, com a violência do Estado contra os manifestantes e a libertação deles da prisão se tornando, respectivamente, o principal motivador e a demanda dos participantes até dezembro.

Porém, ainda que a causa deles possa ter sido justa, os críticos do movimento também tinham um ponto. Por um lado, os protestos da Maidan não tiveram apoio majoritário, com a população ucraniana dividida ao longo das linhas regionais e socioculturais que definiram há muito tantas dificuldades políticas do país. Enquanto as regiões ocidentais – de onde veio a maioria dos manifestantes e historicamente governada por outros países, alguns até 1939 – apoiaram os protestos, o leste russo, que foi governado pela Rússia desde o século XVII, se alienou dos protestos por conta de seu explícito nacionalismo anti-russo, somente um ano depois da chance de votar Yanukovych.

E eles estavam recorrendo à força. O que quer que se pense dos protestos da Maidan, a crescente violência dos envolvidos foi a chave para sua vitória final. Em resposta a um ataque brutal da polícia, os manifestantes começaram a lutar com correntes, paus, pedras, bombas de gasolina, até mesmo um trator – e, eventualmente, armas de fogo, com tudo culminando naquilo que foi efetivamente uma batalha armada em fevereiro, que deixou 13 policiais e quase 50 manifestantes mortos. A polícia “não podia mais se defender dos ataques dos manifestantes”, escreve o cientista político Sergiy Kudelia, fazendo com que eles se retirassem, antecipando a saída de Yanukovych.

O motor dessa violência foi, em larga medida, a direita ucraniana, que, mesmo sendo uma minoria dos manifestantes, serviu como uma espécie de vanguarda revolucionária. Olhando de fora de Kiev, uma análise sistemática de mais de três mil manifestantes da Maidan descobriu que membros do partido de extrema direita Svoboda – cujo líder reclamou certa vez que a Ucrânia era administrada por uma “máfia moscovita-judaica” e que inclui um político que admira Joseph Goebbels – eram os agentes mais ativos nos protestos. Eles eram também mais propensos a participarem de ações violentas do que qualquer grupo, exceto um: o Right Sector [Setor Direito], um grupo de ativistas de extrema direita cuja linhagem remonta a colaboradores nazistas genocidas.

Svoboda utilizou recursos consideráveis, que incluíam milhares de ativistas ideologicamente comprometidos, cofres partidários e o poder e a proeminência oferecidos a ele como partido parlamentar, para mobilizar e manter vivos os protestos, eventualmente comandando a ocupação dos principais edifícios do governo em Kiev e nas regiões ocidentais. Este foi particularmente o caso na cidade ocidental de Lviv, onde os manifestantes tomaram um prédio regional de administração que logo se tornou parcialmente controlado e protegido por paramilitares de extrema direita. Lá, eles declararam um “conselho popular” que “proclamou conselhos locais dominados pelo Svoboda e por seus comitês executivos, os únicos corpos legítimos da região”, escreve Volodymyr Ishchenko, alimentando a crise da legitimidade que terminou com a deposição de Yanukovych.

Só que isso, de modo algum, não ficou limitado à parte ocidental da Ucrânia. O Right Sector promoveu, em janeiro, 19 ataques à polícia em Kiev criticados até mesmo por líderes da oposição, com um manifestante dizendo que o bloco de extrema direita “insuflou vida nova a esses protestos”. Andriy Parubiy, o “comandante não oficial de Maidan”, fundou o Partido Social-Nacional da Ucrânia – uma alusão clara ao nazismo – que mais tarde se tornou Svoboda. Em janeiro de 2014, até mesmo a NBC estava admitindo que “milicianos violentos de direita agora são uma das facções mais fortes liderando os protestos da Ucrânia”. O que parecia ser uma revolução pela democracia e pelos valores liberais terminou apresentando cantos ultranacionalistas dos anos 1930 e proeminentes exibições de símbolos fascistas e supremacistas brancos, incluindo a bandeira confederada americana.

6 de janeiro em fevereiro

A extrema direita, é claro, não se importava com a democracia, nem tinha qualquer amor pela UE. Pelo contrário, a revolta popular serviu como uma oportunidade. O líder do Right Sector, Dmytro Yarosh, instou seus compatriotas em 2009 a “começarem uma luta armada contra o regime da ocupação interna e o Império de Moscou” caso forças pró-russas assumissem o controle. Já em março de 2013, TryZub, uma das organizações que formaram o Right Sector, pediu à oposição ucraniana que se movesse “de uma manifestação pacífica a um plano revolucionário de rua”.

Eles também podem ter desempenhado um papel ainda mais sinistro nos eventos que se desenrolaram. Um longo mistério envolvendo a Revolução Maidan é quem estava por trás das mortes de 20 de fevereiro por snipers que desencadeou o último e mais sangrento dos protestos, com acusações contra todos, de forças do governo e o Kremlin a mercenários apoiados pelos EUA. Sem excluir tais possibilidades, há agora evidências consideráveis ​​de que as mesmas forças de extrema direita que se somaram à causa dos manifestantes estavam também entre os atiradores naquela noite.

Na época, testemunhas viram homens que pareciam manifestantes em prédios ocupados pelos protestos na capital, e múltiplos médicos na Praça Maidan disseram que as feridas de balas em policiais e manifestantes pareciam provenientes da mesma arma. Um manifestante de Maidan admitiu depois ter matado dois policiais e ferido outros naquele dia, e caixas vazias de balas de Kalashnikov foram encontradas no Hotel Ukraina, que estava ocupado. No mesmo lugar uma piloto militar condecorada e herói de resistência anti-russa disse depois que ela havia visto um parlamentar de oposição comandando os snipers. No entanto, a investigação do governo, que se concentrou somente nos assassinatos de manifestantes, começou cheia de falhas graves e irregularidades.

Ivan Katchanovski, da Universidade de Ottowa, analisou provas que saíram no decorrer da investigação e do julgamento dos assassinos. Segundo Katchanovski, a maioria dos manifestantes feridos testemunhou que viram atiradores nos edifícios controlados pela oposição ou tomaram tiros de balas provindas dessa direção. Esses testemunhos foram apoiados por exames forenses. A conclusão a respeito do assunto é improvável, já que o governo interino pós-Yanukovych, no qual as principais figuras de extrema direita assumiram cargos importantes, passou rapidamente uma lei que garantiu imunidade a participantes da Maidan por qualquer violência.

“A extrema direita não se importava com a democracia, nem tinha qualquer amor pela UE. Em vez disso, a revolta popular foi uma oportunidade.”

Por um breve período, parecia que a espiral de crise poderia ser realmente resolvida de forma pacífica, quando Yanukovych e os partidos de oposição assinaram um acordo intermediado pela Europa em 21 de fevereiro, concordando em reduzir os poderes do presidente e a realizar novas eleições em dezembro. Só que o acordo foi recebido com indignação por um movimento de rua cada vez mais militante.

Milhares ficaram em Maidan exigindo a saída de Yanukovych, vaiando os agora apologéticos líderes da oposição por terem assinado o acordo. Os manifestantes desacreditaram o acordo como insuficiente, alguns se reuniram próximo ao Parlamento e exigiam a renúncia e a punição de Yanukovych. Eles aplaudiram um ultranacionalista que ameaçou uma derrubada armada se Yanukovych não fosse embora pela manhã. (Esse orador foi posteriormente eleito parlamentar, juntando-se a um partido de extrema direita e criando o hábito de agredir fisicamente seus oponentes).

“Se eu fosse [presidente Yanukovych], eu tentaria fugir do país”, disse um manifestante em Lviv, onde centenas se reuniram na sequência da assinatura. “Caso contrário, ele vai acabar como [Muammar] Gaddafi ou com uma sentença de morte ou na cadeira elétrica. Ele não vai deixar o país vivo.”

O pânico tomou a capital. Os rumores espalharam que as centenas de armas de fogo apreendidas dias antes por manifestantes que invadiram postos de polícia em Lviv estavam a caminho de Kiev para um estágio final e sangrento da insurreição. Quando o próprio partido de Yanukovych votou para mandar tropas e policiais para seus quartéis, tanto as forças de segurança como, posteriormente, ele próprio voaram da cidade, esperando um derramamento de sangue.

No dia seguinte à assinatura do acordo, o Parlamento ratificou aquilo que foi efetivamente uma insurreição, votando para tirar a presidência de Yanukovych, para o louvor do embaixador norte-americano. Os manifestantes ficaram do lado de fora do Parlamento e atacaram um parlamentar do partido de Yanukovych, antes de invadirem o palácio presidencial. Um proeminente rabino pediu aos judeus que deixassem a cidade e até mesmo o país, enquanto a embaixada israelense os aconselhou a ficar dentro de suas casas.

Há mais uma peça crítica para o quebra-cabeça da Euromaidan: o papel dos governos ocidentais.

Por décadas, Washington e os governos aliados seguiram seus interesses estratégicos e econômicos sob o manto da promoção da democracia e dos valores liberais no exterior. Às vezes, isso significa mandar o dinheiro para reacionários violentos como os Contras da Nicarágua e, às vezes, significa apoiar os movimentos benignos pró-democracia, como aqueles na Ucrânia.

“Os atores externos sempre desempenharam um papel importante na formação e apoio da sociedade civil na Ucrânia”, escreveu a acadêmica ucraniana Iryna Solonenko em 2015, apontando para a União Europeia e os Estados Unidos – e agências como a National Endowment for Democracy (NED) e a Agência para o Desenvolvimento Internacional (USAID), cuja sede de Kiev estava no mesmo complexo que a embaixada norte-americana. “Pode-se argumentar que, sem esse apoio externo, que tem sido a principal fonte de financiamento da sociedade civil ucraniana desde a independência, ela não teria se tornado o que é agora.”

Esse foi o caso na Revolução Laranja de 2004-2005, na qual as ONGs estrangeiras pouco mudaram em matéria de corrupção e autoritarismo na Ucrânia, mas alcançaram o objetivo crucial de empurrar a política externa da Ucrânia para o Ocidente. Tal qual o liberal Center for American Progress publicou naquele ano:

Os americanos se intrometeram nos assuntos internos da Ucrânia? Sim. Os agentes americanos com influência prefeririam uma linguagem diferente para descrever suas atividades – assistência democrática, promoção da democracia, apoio à sociedade civil etc. –, mas seu trabalho, apesar de maquiado, procura influenciar a mudança política na Ucrânia.

Funcionários norte-americanos, descontentes com o apressado acordo com a UE, viram uma chance semelhante nos protestos da Maidan. Apenas dois meses antes deles se insurgirem, o então presidente do NED, apontando para queda de Yanukovych, escreveu que “as oportunidades são consideráveis, e há maneiras importantes pelas quais Washington poderia ajudar”. Na prática, isso significava que grupos de financiamento como o New Citizen, que, segundo o Financial Times, “desempenharam um grande papel em provocar o protesto”, estavam liderando uma oposição pró-UE. O jornalista Mark Ames descobriu que essa organização recebeu centenas de milhares de dólares para “promover a democracia”.

Ainda que possa demorar muito para compreendermos tudo, Washington assumiu um papel ainda mais direto quando o protesto começou. Os senadores John McCain e Chris Murphy se reuniram com o líder fascista do Svoboda, ficando lado a lado com ele enquanto anunciaram o apoio deles aos manifestantes, ao mesmo tempo que a secretária-assistente do Estado, Victoria Nuland, distribuia sanduíches para eles. Para entender a natureza provocativa desses movimentos, basta recordar a indignação do establishment quanto a mera ideia de que Moscou usou fábricas de trolls para apoiar as vozes dos protestos feito pelo Black Lives Matter.

Mais tarde, um telefonema vazado mostrou Nuland e o embaixador norte-americano na Ucrânia manobrando para formar um governo pós-Maidan. “Foda-se a União Europeia”, exclamou Nuland, sobre a intervenção menos agressiva do bloco no país. “Yats é o cara que tem a experiência econômica”, disse ela, referindo-se ao líder da oposição, Arseniy Yatsenyuk, que apoiou as devastadoras políticas neoliberais exigidas pelo Ocidente. Você provavelmente pode adivinhar quem se tornou o primeiro-ministro no governo interino pós-Maidan.

É um exagero dizer, como têm sustentado alguns críticos, que Washington orquestrou o levante da Maidan. Porém, sem dúvida, as autoridades norte-americanas apoiaram e a exploraram para seus próprios fins.

Revolução inconclusa

Assim como em 2004, o resultado da Revolução Maidan, mesmo sem ser culpa da maioria dos ucranianos bem-intencionados e frustrados que ajudaram a derrubar Yanukovych, não foi a paz e a estabilidade, nem um movimento pelos valores liberais e pela democracia. Na prática, quase todas as demandas dos manifestantes não foram realizadas.

A mesma extrema direita que liderou a derrubada Yanukovych, incluindo Parubiy, ocupou cargos no governo provisório seguinte, enquanto o vencedor da eleição presidencial de 2014 – o sétimo homem mais rico de Ucrânia, Petro Poroshenko – tinha um histórico de corrupção. Seu ministro do Interior prontamente incorporou o Batalhão Azov, uma milícia neonazista, à Guarda Nacional da Ucrânia, tornado o país agora uma Meca para extremistas de direita de todo o mundo, que vêm aprender e obter treinamento do Azov – incluindo, ironicamente, russos supremacistas brancos que foram perseguidos em seu país por Putin.

Apesar da recente perda de assentos desses partidos no Parlamento, os movimentos ultranacionalistas mudaram com sucesso a política do país para a extrema direita, com Poroshenko e outros centristas apoiando medidas para marginalizar falantes de russo e glorificar colaboradores nazistas. Ainda assim, os candidatos de extrema direita entraram no Parlamento sem rótulos de reacionários, e extremistas como ex-comandante do Azov, Andriy Biletsky, assumiram posto de alto nível no governo. Enquanto o vigilantismo de extrema direita se espalhou pelo país, o próprio Poroshenko concedeu a cidadania a um neonazista bielorrusso envolvido em um caso inaceitável de antissemitismo.

“Não há dúvida de que as autoridades dos EUA apoiaram e exploraram o Euromaidan para seus próprios fins.”

Pouco ou nada mudou com relação à corrupção ucraniana ou ao autoritarismo sob Poroshenko ou sob atual presidente Volodymyr Zelensky, eleito em 2019 como um outsider para trazer mudanças. Cada um governou como um autocrata, utilizando seus poderes para perseguir adversários políticos e enfraquecer a dissidência, e se envolveu em escândalos de enriquecimento pessoal que continuaram endêmicos para a classe política ucraniana.

Não que isso interrompesse a celebração por parte de Washington e o apoio norte-americano. Esse novo patrono imperial apenas intensificou esses problemas, com a família do atual presidente dos EUA pessoalmente envolvido em um dos principais escândalos de corrupção do país antes de se valer de sua posição para instalar um procurador-geral marcadamente corrupto.

Enquanto isso, a Ucrânia segue envolvida em uma miniguerra civil desde Maidan. Depois que Putin se movimentou para preservar a base naval da Crimeia do controle da OTAN, recorrendo à presença militar russa e um referendo duvidoso para anexar ilegalmente a região de maioria russa logo após a saída de Yanukovych, os separatistas pró-russos começaram a se mobilizar no leste do país – primeiro em protesto, depois em grupos armados. Quando o governo provisório mandou as Forças Armadas para sufocar a rebelião, Moscou enviou suas próprias tropas, e toda a região tem sido um barril de pólvora mortal desde então.

Contudo, uma coisa crucial mudou. Com Yanukovych fora, o governo provisório e o primeiro-ministro escolhido a dedo por Washington assinaram o acordo da UE cuja rejeição deu início a isso tudo, solidificando o giro da Ucrânia para o Ocidente e inaugurando as medidas de austeridade brutais demandadas pelo FMI. No decorrer dos anos, o sucessor de Yanukovych assinou uma rodada de privatização, aumentou a idade de aposentadora e cortou os subsídios de gás, algo exigido até pelo então vice-presidente Joe Biden. De forma não surpreendente, os ucranianos irritados votaram com raiva e o jogaram o país em um desfiladeiro.

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Sombras e mentiras

A insurreição de 2014 na Ucrânia foi um caso enormemente complicado. Entretanto, para a maioria dos observadores ocidentais, muitos de seus fatos básicos e bem documentados foram postos ​​em uma narrativa simplista e maniqueísta ou apresentados como desinformação e propaganda, como o papel crucial que a extrema direita teve na revolta.

Na verdade, a Revolução Maidan continua sendo um evento confuso e difícil de categorizar, mas está longe daquilo a que os ocidentais foram levados a acreditar. É uma história de manifestantes liberais e pró-ocidentais, impulsionada por queixas legítimas, mas, em grande parte, provindas de somente metade de um país polarizado, entrando em um temporário casamento de conveniência com a extrema direita para promover uma insurreição contra um presidente corrupto e autoritário. A tragédia é que, em larga medida, isso serviu para empoderar neonazistas, literalmente, divulgando somente os objetivos dos poderes ocidentais que lhes emprestaram apoio.

É uma história tragicamente comum na Europa pós-Guerra Fria, de um país mutilado e dilacerado quando suas divisões políticas e sociais foram usadas e estimuladas ainda mais na peleja de uma grande rivalidade entre poderes mundiais. E o fracasso ocidental em compreender que levou o país a um ponto em que Washington continua imprudentemente se envolvendo em um lugar repleto de questões sombrias, onde pouco é o que parece na superfície.

O envolvimento ocidental ajudou a trazer o país a esta crise. Há pouca razão para pensar que vai tirá-lo dela agora.

Sobre os autores

É escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canadá.

Reportagem publicada originalmente no site Jacobin Brasil

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