Ian Fleming, o criador de Bond, viveu apenas duas vezes

Atualizado em 21 de novembro de 2012 às 20:38

Como no título do clássico de 007, Fleming viveu sua vida e a de Bond

Não surpreende que ele tenha morrido do coração, aos 56 anos

E então Dagomir Marquezi chega ao fim da sua busca pessoal pelas origens de James Bond e seu criador Ian Fleming, na Jamaica.  Os demais capítulos de Dagô podem ser encontrados aqui. O caranguejo de ferro, como Fleming chamava a morte, apanha o grande escritor aos 56 anos, em 1964. Morto Fleming, sua criatura logo conquistaria o mundo — vivo, vivíssimo, e eterno.
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EPÍLOGO: FESTA NO JARDIM DO COMANDANTE

9 de dezembro de 2011. É meu último dia em Oracabessa. Peço para o breakfast a apimentada omelete de calalou (uma verdura amarga como folha de mostarda) com suco de laranja. Completo com um bule de Blue Mountain, que Ian Fleming chamava de “o melhor café do mundo”.

O Caranguejo de Ferro pegou o Comandante em 12 de agosto de 1964, aos 56 anos. Um enfarto o derrubou no aniversário do seu filho Casper, em Canterbury, 88 km a leste de Londres. Suas últimas palavras foram pedidos de desculpas aos enfermeiros que o atenderam, pelo inconveniente. Morreu no momento em que seu espião virava mania planetária.

Quando estou na segunda xícara de Blue Mountain, o garçom aparece com um senhor negro de olhos azuis muito claros. É Ramsey Dacosta, o mesmo rapaz que cuidava do jardim no dia em que James Bond nasceu. Aos 75 anos, ele continua jardineiro do resort.

Ramsey é a última das testemunhas vivas do que acontecia em Goldeneye naqueles agitados janeiros e fevereiros. Trata o ex-patrão como “the Commander”. Diz que durante o “período colonial”, empregados como ele não tinham nenhuma intimidade com os donos da casa.

Mesmo assim, ele viu quando Sean Connery fez sua primeira visita à casa. Mas só soube de quem se tratava quando assistiu Dr No em um cinema local. O mesmo acontecia com hóspedes do jet set londrino e até com um primeiro ministro britânico (Anthony Eden) que passou férias naquela casa.

Ramsey se lembra que nas duas últimas estadias de Fleming em GoldenEye, sua mulher Anne já não o acompanhava. Pergunto se nessa época o comandante trazia outras mulheres além da esposa, e o sorriso meio destentado do senhor Dacosta dispensa uma resposta mais detalhada.

No meio da tarde atravesso a ponte sobre a lagoa, e vou até a recepção. Peço permissão para passar meu último fim da tarde na casa de Fleming. Permissão concedida.

Goldeneye está completamente vazia. Volto para a escrivaninha. Fico l[a longos minutos enquanto o sol pela veneziana traça suas paralelas na parede. Sinto cheiro de cigarro. Vejo o espectro da velha Imperial se materializando sobre a mesa de canto. Dedos invisíveis passeiam pelas suas teclas martelando a página fantasma:

“Duas semanas depois, James Bond acordou no seu quarto do Hôtel Splendide, algumas histórias passando pela sua cabeça. Ele tinha chegado em Royale-les-Eaux a tempo de almoçar, dois dias antes. Não houve nenhuma tentativa de contata-lo e nenhuma faísca de curiosidade quando ele se assinou no registro ‘James Bond, Port Maria, Jamaica’.”.

Vou para o jardim. Dessa vez, a grande mesa está cheia de convidados. Blofeld acaricia o gato branco sobre seu colo. M fuma seu cachimbo ao lado da fiel secretária Moneypenny. Rosa Kleb, com o uniforme das forças armadas soviéticas, limpa as unhas com um punhal que sai da ponta de sua bota. Numa ponta da mesa está René Mathis (Deuxiémme Bureau). Na outra ponta Felix Leiter (CIA) coça o queixo com o gancho implantado no braço. Francisco Scaramanga carrega um enorme revólver dourado na cintura e exibe os três mamilos no peito. Junto à árvore, um moreno de topete em forma de vírgula toma seu dry-martini batido, não mexido.

São todos eles inimigos de morte entre si. Mas no jardim em que todos eles nasceram, riem juntos às gargalhadas, lembrando os bons tempos de uma festa que nunca acaba. No quarto, a máquina fantasma continua a escrever.

FIM
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Dagomir Marquezi pode ser encontrado em http://dagomir.blogspot.com.br/

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Dagomir Marquezi é uma lenda viva do jornalismo. Talentoso e versátil como poucos, ele se locomove com proficiência não só no jornalismo, mas na literatura, nos quadrinhos, no cinema, na tevê etc. Fora do campo profissional, Dagô, como os amigos o chamam, se dedica a causas como o ambientalismo e a defesa dos animais.