Libération: “Brasil: Allelula! Bolsonaro quer manter controle custe o que custar do país que destruiu”

Atualizado em 30 de setembro de 2022 às 9:48
Lula
Lula é capa do jornal francês Libération, que contrasta o ex-presidente com o atual: “Jair Bolsonaro parece determinado a controlar custe o que custar o país que ele destruiu”

As eleições brasileiras são destaque na imprensa estrangeira. O ex-presidente Lula é capa do Libération desta sexta-feira. “Brasil: Alelula”, estampa o jornal francês.

“Allelula” é um duplo jogo de palavras com “aleluia” e “allez Lula!”, que quer dizer “vamos, Lula”, portanto uma manchete de apoio do jornal à sua candidatura.

“O candidato de esquerda é favorito do primeiro turno nas eleições presidenciais de domingo. Diante dele, Jair Bolsonaro parece determinado a controlar custe o que custar o país que ele destruiu”.

“Ele vem de longe, muito longe e sem dúvida é o que faz sua força”, afirma o editorial da publicação, assinado por Alexandra Schwartzbrod, em alusão a Lula.

“Desde já, seu desempenho é incrível. Este homem de 76 anos conseguiu ir da condição de operário à função de chefe de Estado, a superar um câncer e depois acusações de corrupção e anos de prisão, antes de conseguir voltar à corrida para ameaçar e talvez até derrotar nos próximos dias o louco furioso Jair Bolsonaro”.

“Fiel a seus valores, que pregam a justiça social, a igualdade, principalmente entre homens e mulheres, preocupado com o desafio ambiental, Lula provoca medo na parte do povo brasileiro enlouquecida pelo declínio da fé e da autoridade, essa parte da população que continua acreditando nas promessas daquele que fala mais alto e controla o exército”, analisa.

“A alta popularidade de Jair Bolsonaro permanece grande entre os evangélicos, que constituem com o exército um dos pilares de seu eleitorado. Nossa reportagem nesse meio é esclarecedora: muitos dos que entre eles veem Lula como o ‘candidato do demônio’ consideram que ‘não se pode ser cristão e de esquerda’. Mas esses excessos começam a cansar inúmeras brasileiras e brasileiros, inclusive certos fiéis que não aguentam mais as pressões exercidas sobre eles por seu pastor para estimulá-los a votar em Bolsonaro”, constata.

“Se uma parte entre eles termina por se convencer de que ‘votar em Lula não é um pecado’, como clama um slogan lançado por um pastor próximo do Partido dos Trabalhadores, então Lula tem chances de mandar para casa um presidente cujo obscurantismo causou estragos humanos (as centenas de milhares de mortes de Covid), ambientais (a devastação da Amazônia) e democráticas (a confusão pelas fake news) consideráveis”, avalia.

“Para a jovem democracia brasileira, é uma eleição quase existencial”, considera reportagem de Chantal Rayes, na mesma edição.

“Na reta final, o chefe da esquerda, cujo estatuto de favorito nunca foi desmentido, se beneficiou de alinhamentos de peso”, em alusão a André Lara Resende, Xuxa e Felipe Neto.

“O que faz sonhar com uma vitória já no primeiro turno, uma possibilidade que os institutos de pesquisa não excluem”, precisa.

“Em intenções de votos válidos, ele chega a 52%. A menos que a abstenção, que concerne em relação ao primeiro colocado seu eleitorado mais carente, não ajude”.

A reportagem da correspondente do jornal em São Paulo aponta os “indicadores sociais no vermelho” sob o governo Bolsonaro.

“Pela primeira vez no Brasil, o pleito opõe o presidente a um ex-presidente: duas figuras bastante conhecidas do eleitor, que confronta seus resultados. Essa particularidade ofusca as outras candidaturas. O líder histórico do PT é apoiado pela lembrança feliz de seus dois mandatos, marcados por um boom de consumo e uma forte alta nos salários. Quanto a Bolsonaro, ele é o primeiro presidente a afrontar uma posição desfavorável numa campanha à reeleição. E isso, apesar do desemprego e da inflação em queda”, observa.

“Em agosto, o governo aumentou os auxílios aos mais vulneráveis, sem obter no entanto um impacto significativo sobre as intenções de voto”.

“São medidas eleitoreiras, tomadas em plena campanha”, diz à repórter francesa um vendedor ambulante, “um pouco envergonhado de ter de recorrer ao auxílio”.

“Com Lula, a gente não vai mais precisar porque ele vai criar empregos”, afirma o brasileiro.

“Pobreza, desigualdade, penúria alimentar que atinge 15% da população, três vezes mais do que em 2018, num país que é no entanto um dos maiores produtores alimentícios do mundo”, contrasta a reportagem.

“A divisão social das intenções de voto revela um forte fator de classe. Quanto mais se é pobre, mais se vota em Lula. Quanto mais se é rico, mais se vota em Bolsonaro. E há mais pobres do que ricos”, afirma.

“Com o debate tão esperado de quinta-feira à noite na TV Globo, os principais candidatos jogaram sua última cartada. Para Bolsonaro, tratava-se de provocar o segundo turno. Enquanto seu adversário buscava convencer os indecisos e eleitores dos ‘pequenos’ candidatos a aderir ao voto útil. Com um argumento de peso: resolver essa história o mais rápido possível com o objetivo de de cortar pela raiz toda vontade de contestação do resultado das urnas, ameaça feita por Jair Bolsonaro”, relata.

O texto lembra a aprovação do Senado americano de uma resolução que apela ao governo brasileiro pela realização de eleições pacíficas, do contrario sob pena de sanções. E menciona o apelo ao governo americano a conhecer o resultado imediatamente, “para acabar de uma vez por todas com qualquer tentação golpista”.

“O ambiente é de crispação no país. Diversos episódios de violência mancharam a campanha. A última aconteceu num bar onde um homem matou a facadas um cliente que se identificou como eleitor de Lula. O Brasil segura a respiração”.

Religião

A edição do jornal francês investiga o fenômeno evangélico. “Os pastores pouco apreciaram a visibilidade de minorias sexuais e lutas feministas durante os treze anos do Partido dos Trabalhadores no poder, com Lula e Dilma Rousseff”.

“No centro de São Paulo, o templo de Salomão propõe-se à imagem do edifício bíblico de mesmo nome. Sede mundial da Igreja Universal do Reino de Deus, uma multinacional da fé presente em mais de uma centena de países, imponente, inaugurada em 2014, na presença de Dilma Rousseff”, lembra.

“O pastor não diz nada. É através de seu império midiático, e principalmente seu jornal Folha Universal, com mais de 1,7 milhão de exemplares de tiragem na saída dos templos, que essa instituição faz campanha contra Lula”.

“Segundo nossas informações, diante da derrota anunciada do presidente, os líderes de três grandes cultos teriam tentado se aproximar do líder da esquerda, que recusou receber-lhes”, afirma.

“Que rompam primeiro publicamente com Bolsonaro, e aí nós nos falaremos”, diz um conselheiro de Lula à reportagem.

Segundo um pastor evangélico próximo do Partido dos Trabalhadores ouvido por Libération, o alinhamento das igrejas evangélicas com a extrema direita desestimulou conversões do catolicismo. “Sob Bolsonaro, o número de evangélicos só aumentou 6,5% em três anos, contra um crescimento trienal de 27,6% sob o PT. ‘Prova de que a esquerda respeita a liberdade religiosa’, diz o pastor”.

Uma segunda reportagem do jornal sobre o fenômeno evangélico no Brasil destaca o papel de Michelle Bolsonaro, “sua bela, charme pelo qual Jair Bolsonaro, machista grosseiro e orgulhoso de sê-lo, tenta vencer a aversão que ele inspira nas mulheres brasileiras, majoritárias no eleitorado”.

O texto aponta a primeira-dama como possível futura candidata à presidência à extrema direita, já que os filhos Bolsonaros não têm sua envergadura”.

Mas as investigações judiciais do patrimônio do clã bolsonarista são apontadas como possível obstáculo. “A esposa do presidente tem algumas pendências – ela aparece num caso de desvio de fundos – o que lhe rendeu o apelido no Brasil de ‘Micheque’”.