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Moro e o paradoxo da (im)parcialidade

O ex-juiz Sergio Moro. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Por Lenio Streck e Marco Aurélio de Carvalho

Paradoxos são “coisas” insolúveis. Um dos mais famosos é o do “eu só sei que nada sei”. Ora, se nada sei, como posso dizer que alguma coisa eu sei?

Outro famoso: todos os cretenses são mentirosos. Porém, quem disse isso foi um cretense. Logo, ele também mente. O contrário da mentira é a verdade. Então? Se tudo é, nada é.

Assim, por vezes, quando dizemos algo, caímos num paradoxo. E dele não conseguimos mais sair.

É o caso de Merval Pereira, que disse, em sua coluna do dia 13 de fevereiro, que a imparcialidade — princípio basilar da Justiça — é um mito, uma crença. Imparcialidade, para ele, é um conceito relativo.

E o fez com um objetivo de criar uma “paradoxalidade”: se a imparcialidade não existe, Moro não poderia ter sido declarado parcial. Se tudo é, nada poderá ser então.

Para alcançar seu intento, o jornalista lançou mão de um trabalho acadêmico — uma tese de doutorado — da professora Bárbara Gomes Lupetti Baptista, em que ela mostra, a partir de 80 entrevistas e de sua própria observação em processos cíveis, que a imparcialidade não existe no âmbito das práticas judiciárias. É um mito, diz a professora.

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Tempos depois da tese e em face da polêmica envolvendo o julgamento da parcialidade do ex-juiz Sergio Moro no STF, a professora, a partir da tese, escreveu um artigo científico, encerrando-o com a frase: “Moro e a Operação Lava Jato são, portanto, a mais pura explicitação da Justiça brasileira”. Escandalosamente parcial…

Essa frase foi elevada à máxima potência por Merval, que concluiu que o que Moro fez na Operação Lava-Jato foi absolutamente normal. Claro, se a imparcialidade não existe, Moro não poderia ter sido acusado e muito menos condenado por parcialidade.

Eis o paradoxo: como alguém pode ser acusado de alguma coisa que não existe ou que “existe” apenas no plano da mitologia, da crença ou da fantasia?

A resposta de Merval é simples: Moro não foi parcial. Agiu como age a Justiça brasileira. E reforça sua curiosa “tese” com outra citação da professora, quando diz que não pode ser considerada como “absurda, incomum, inédita ou extraordinária a conduta do juiz que conduziu o processo da Operação Lava Jato”. Mais: quem assim o fizer desconsidera “a realidade processual brasileira”.

Discordamos de Merval. Uma vez mais. Para salvar a parcialidade de Moro, Merval arrasta para a parcialidade toda a Justiça brasileira. Algo paradoxal do tipo “não existe erro se todos estão errados”.

Obviamente, também não concordamos com a frase da professora. Se ela tem razão, fracassamos como juristas. E como sociedade. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem a seguinte máxima: não basta ser imparcial; tem de parecer imparcial aos olhos da comunidade. É a “teoria da aparência”. Será que eles estão errados? O mundo estaria errado ao levar a imparcialidade a sério? O Pacto de San José da Costa Rica leva a imparcialidade a sério. E nosso ordenamento também. Só Moro e Merval que não.
Será que o Brasil se acostumou com a parcialidade? Se todos são, ninguém é?

Ou a “crença” esconde um alto grau de tolerância com uma Justiça criminosamente parcial e seletiva para alguns, ou ainda um desejo inconfessável pelo construção de uma tal terceira via cada vez mais distante e improvável…

De toda sorte, a mesma coragem que Merval tem para debater esses temas deveria guiá-lo a uma autocrítica necessária sobre o seu papel na construção do lava-jatismo e do bolsonarismo jurídico. Onde a parcialidade é o “normal”.
Eis a questão.

Artigo publicado originalmente em O Globo.

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Davi Nogueira

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