Nova realidade do Brics é pano de fundo para encontro de Lula com Macron

Atualizado em 23 de junho de 2023 às 16:43
O gesto de Macron de procurar o Brics é “da maior importância para o mundo, porque é o gesto de quem quer dialogar”, avalia Sócrates. Foto: Ludovic Marin/Pool/AFP

José Sócrates foi primeiro-ministro de Portugal durante seis anos, de 2005 a 2011. Foi também secretário-geral do Partido Socialista. Hoje em dia, não exerce nenhum cargo político. Mas acompanha com lupa a geopolítica mundial e tem especial interesse pela política externa brasileira. Natural que tenha muito a dizer sobre a viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que cumpriu agenda em Roma nesta quarta-feira (21) e estará em Paris na quinta (22) e na sexta (23).

Na opinião dele, o compromisso que merece mais atenção é o encontro de Lula com o presidente da França, Emmanuel Macron, por dois motivos. Um deles é o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia. O outro, é a solicitação de Macron para participar da próxima cúpula do Brics, na África do Sul, noticiada pelo jornal L’Opinion em 12 de junho.

“A França foi o único país do Ocidente a pedir para assistir à cúpula do Brics. Isso é muito, muito importante”, ressalta o ex-premiê, repetindo a palavra “muito” propositalmente. Ele explica os motivos: primeiro, a França é uma potência que mostra vontade de dialogar com outros países; segundo, e ainda mais relevante, os Brics estão num processo de mudança, devido às novas configurações geopolíticas, que se aceleraram por causa da guerra na Ucrânia.

Sócrates aponta um dilema no bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Quando foi formado, era essencialmente uma coligação de potências médias, um polo alternativo para negociar melhor com as potências dominantes. Agora, essa coligação contém uma grande potência, que é China, e isso “muda tudo”. Muda, inclusive, o papel que o Brasil tem a desempenhar.

“O Brasil não tem interesse que o Brics seja uma aliança contra os Estados Unidos”, avalia o ex-premiê, que vê a diplomacia brasileira usando “luvas de pelica, muita diplomacia” para ser autônoma sem ser hostil em relação a Washington. “A China tenderá a ter um grupo de países que fazem parte da sua área de influência. O Brasil pode e deve fazer parte, mas sem hostilizar os EUA. O Brasil tem que se comportar de forma a não ser forçado a escolher. Deve ter liberdade de se dar com as duas superpotências. E como se sabe, os impérios sempre lidaram mal com a neutralidade”.

Sobre a França, José Sócrates avalia que é o único país europeu que faz uma política externa diferente da média, que “fala mais de paz e não só de fornecer armamento à Ucrânia”, descolando-se da orientação ocidental, manifestando interesse em ir à cúpula do Brics — que poderá ter a presença do presidente da Rússia, Vladimir Putin, fortemente criticado pelos países ocidentais pela invasão da Ucrânia.

“Esse gesto é da maior importância para o mundo, porque é o gesto de quem quer dialogar, de quem não se limita ao discurso de condenação da Rússia”, avalia o português. “Isso vai, de certa forma, trazer mais rapidamente à superfície os dilemas do Brics”. Na opinião dele, essa atitude está de acordo com a tradição francesa, de uma perspectiva geopolítica de não alinhamento com todos os outros. Como exemplo, ele cita a oposição à “guerra ao terror” declarada pelos Estados Unidos após os ataques terroristas de 11 de Setembro.

Acordo Mercosul-UE

Quanto às negociações sobre o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, que já levam mais de 20 anos e tiveram um revés recente, José Sócrates diz que a explicação para tal revés é a política ambiental brasileira durante o governo Jair Bolsonaro, assim como o desprezo pela diplomacia do ex-presidente, o que afetou a relação bilateral. A visita de Lula, segundo ele, “pode dar um grande empurrão à negociação do acordo”, assim como melhorar o trato com um país que é membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, além de uma potência nuclear, cultural e econômica.

Clima, a última bandeira da Europa

A questão ambiental, segundo ele, é “talvez uma das últimas bandeiras da União Europeia no mundo”, uma questão “estratégica no sentido de afetar todas as outras e dominar todas as outras”. “Estou convencido que o acordo ainda não foi assinado por causa disso”.

E por que é a última bandeira europeia? O ex-premiê avalia que a Europa, que já foi um “ator mundial sempre respeitador do diálogo, da soberania dos outros países”, perdeu essa imagem em função de dois aspectos: a guerra contra o terror, que reduziu a liberdade individual, e as políticas em relação aos refugiados. “A Europa dos direitos humanos é uma brincadeira, a Europa do direito internacional, idem. Por isso não restam muitas bandeiras”.

Agenda de Lula na França

O presidente Lula participa nessa quinta da Cúpula para um Novo Pacto Financeiro Global, que abordará a reforma dos bancos multilaterais de desenvolvimento, o financiamento de tecnologias verdes, a criação de novos impostos internacionais e instrumentos de financiamento. Na sexta, após o Diálogo de Alto Nível da Cúpula, terá almoço de trabalho oferecido por Emmanuel Macron e fará um discurso no evento do Power our Planet, no Campo de Marte, que tem como mote a discussão e a atração de recursos para o combate à crise climática e aos problemas sociais. O presidente foi convidado pelo vocalista da banda de rock Coldplay, Chris Martin, quando esteve em turnê no Brasil.

No almoço com o presidente francês, além dos pontos de divergência nas negociações do acordo entre Mercosul e União Europeia, especialmente nas questões ligadas ao meio ambiente e às compras governamentais, Lula deve abordar a cúpula da Amazônia, que será realizada em Belém (PA), e para a qual Macron foi convidado, e a reunião de líderes da União Europeia e da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), segundo o Itamaraty.

Publicado no Brasil de Fato

Participe de nosso grupo no WhatsApp, clique neste link
Entre em nosso canal no Telegram, clique neste link