“O que eu não quero é o triunfalismo ocidental”, diz o filósofo esloveno Slavoj Žižek sobre a guerra da Ucrânia

Atualizado em 11 de fevereiro de 2023 às 13:47
Bandeira da Ucrânia em meio a escombros
Bandeira da Ucrânia em prédio destruído. Foto: Alexander Ermochenko/Reuters

Tradução de Edward Magro

O filósofo esloveno Slavoj Žižek falou com Meduza sobre a guerra Rússia-Ucrânia, contextualizando-a como parte de um conflito ideológico global, no qual o próprio Vladimir Putin está estreitando amizade com outros regimes autoritários para criar um novo eixo ultraconservador de poder global. Pessimista, como se autointitula, Žižek adverte o Ocidente contra um sentimento complacente de superioridade moral.

A virada ideológica neofascista que agora atende às ambições imperialistas de Putin não é, diz ele, especificamente um problema russo. Em vez disso, é um estudo de caso de como as coisas dão errado quando a competição política se transforma em luta entre oligarcas. Esta é uma versão condensada da entrevista do filósofo publicada pela primeira vez pela Meduza em russo.

Voltando aos anos 1990

Não vejo qualquer possibilidade de algum avião especial trazer Putin, Medvedev, e os outros para Haia, sem que haja primeiro uma mudança total na Rússia. Mas, em vez de demonizar Putin, deveríamos olhar para as raízes da situação e nos perguntar o que o Ocidente fez de errado na década de 1990, já que não é inocente desta situação atual.

O paradoxo da Rússia da era Yeltsin era o seguinte: o acordo entre a Rússia pós-soviética e as potências ocidentais era que a Rússia seria reconhecida como uma das superpotências, com a condição de que não agisse realmente como tal. O Ocidente estava agindo com um senso oportunista de – “Vamos aproveitar a oportunidade e enfraquecer a Rússia”. E todo o processo de privatização na Rússia deu totalmente errado. O que aconteceu foi que alguns oligarcas foram pegando, pegando e pegando todos os grandes recursos naturais, chegando a um capitalismo pouco produtivo. Então eu acho que as raízes da catástrofe, as raízes do autoritarismo estão, infelizmente, nos anos Yeltsin (com toda a simpatia por Yeltsin, que se encontrava numa situação extremamente difícil).

Considere Yeltsin em 1993, quando ele avançou com tanques, bombardeou o parlamento, e ampliou os poderes do presidente: é isto que o povo geralmente quer. Posso estar sendo pessimista neste ponto, mas as pessoas realmente não querem uma democracia plena. Uma democracia plena significa muita responsabilidade. O que as pessoas querem é um regime que não seja terrorista, onde se possa confiar no estado de direito, mas também um regime em que se possa confiar, um regime que pelo menos dê a impressão de saber o que quer. E é por isso que o que está acontecendo com a Rússia agora é resultado dos anos de Yeltsin. Putin não criou essa ordem – ele apenas a rearranjou.

A catástrofe ocorreu porque o pluralismo político evoluiu para um conflito entre oligarcas. Este não é um processo especificamente russo. O que achamos que está acontecendo agora nos Estados Unidos? Em certo sentido, pessoas como Jeff Bezos ou Elon Musk também são oligarcas. Agora, vemos alguns aliados próximos abandonando Putin e brigando entre si. Este é um momento extremamente perigoso, mas eu não sou, em absoluto, contra a Rússia como estado. Isso tudo é muito triste. A luta pelo poder, nominalmente “político”, continua assumindo a forma de conflito entre oligarcas, e de forma bastante transparente. Veja Evgeny Prigozhin atacando o ministro da Defesa, Shoigu. Um estado sério não pode permitir esse tipo de situação, uma situação em que um grupo mercenário afirma ser o grupo mais eficaz na frente de batalha, etc. Isso é perigoso, e me preocupa muito.

A linguagem da hostilidade

A segunda coisa que me preocupa sobre a Rússia é o que alguns de meus amigos tentam me dizer: “Escute, não leve muito a sério todas essas coisas sobre ‘valores ocidentais corruptos’, LGBT, sodomia, satanismo, o que quer que seja. Isso é apenas ideologia. Não importa. O que a Rússia realmente quer é um pedaço da Ucrânia”.

Bem, vamos devagar. Não subestime a força material da ideologia. Veja o nazismo. O antissemitismo era uma ideologia e, como ideologia, levava a terríveis consequências práticas. A tragédia é que a Alemanha, quando já estava perdendo, continuou com o Holocausto até o fim. Alguns altos políticos alemães, como Albert Speer, tentaram limitar seu alcance, argumentando: Por que matar os judeus? Todos os homens aptos deveriam estar na indústria, etc. Mas prevaleceram os adeptos da linha dura, e receio não comprar essa teoria pragmática de que tudo se trata, ou de poder material, ou de um pedaço de terra. Claro, a maioria das pessoas é cínica e ela não leva a sério a ideologia; mas funciona da mesma forma, independentemente de acharmos se é importante ou não.

Minha única observação crítica sobre a Ucrânia é que seu grande ponto, “Estamos defendendo a civilização europeia contra as hordas bárbaras” soa um pouco como Alexander Dugin, quando ele fala sobre “a verdade russa” e deixa os europeus de fora. Veja os Estados Unidos, onde a esquerda e a direita falam, uma com a outra, usando a mesma linguagem violenta. A América está à beira de uma guerra civil. A maioria dos republicanos não considera Biden um presidente legítimo. Trump disse recentemente que, ao lutar pela liberdade (como ele a entende), não há problema em violar a Constituição. Portanto, justamente por ser de esquerda, eu digo, não brinque com fogo. Temos uma crise global, com conflitos ideológicos globais que nada têm a ver com “valores eurasiáticos” ou com “decadência ocidental”.

Vou dizer algo terrível agora. Com tudo o que escrevi contra Putin, certa vez ele disse algo que quase me fez sentir alguma simpatia por ele. Ele disse, a propósito de um feriado judaico, que a Rússia deseja construir uma sociedade multicultural onde judeus, muçulmanos e budistas possam, todos, ter o seu lugar. Isso coloca a Rússia como um estado multicultural, em vez de um estado-nação “normal”, e penso que é nesse sentido que a Rússia deveria realmente construir sua identidade. Deveria ser uma versão oriental da União Europeia. Poderia ser mais centralizado do que a UE, mas devo dizer que também gosto disso, porque, para ser eficaz, a própria UE precisa de mais centralização cooperativa – não apenas para lidar com a guerra, mas para enfrentar crises ecológicas, problemas de imigração, a situação dos cuidados com a saúde, e assim por diante.

Portanto, não estou dizendo que a Rússia deveria simplesmente se tornar um estado-nação de estilo ocidental. Eu até acho que talvez tenha sido um erro deixar a União Soviética desmoronar. Sejamos claros: havia muita diferença cultural com países como Letônia e Estônia. Ok, então deixemo-los ir. Mas outras partes poderiam ter sido acomodadas dentro de um modelo pluralista. É aqui que eu vejo uma oportunidade perdida. Em vez disso, veja quem são os principais aliados da Rússia hoje. China (condicionalmente) e depois Irã e Coréia do Norte. Isso é muito preocupante.

Se um país depende demasiado de seus recursos naturais, exportações de petróleo, alimentos ou grãos, essa dependência o torna inerte e pode abrir caminho para novas formas de colonização. Aqui temos a Ucrânia e sua luta pela liberdade. Nós a apoiamos. Perfeito, mas será que o Ocidente está aqui desinteressadamente? Vamos ver o que está acontecendo na Ucrânia, política e economicamente. Li que um terço das melhores terras está nas mãos de particulares ou de propriedade de alguma empresa ocidental. Isto é uma colonização econômica pelo Ocidente.

Eu encontrei um videoclipe de Volodymyr Zelensky apresentando, na televisão, uma festa de Ano Novo na Rússia. Era 2013, e ele ainda era comediante. Esse vídeo, pensei eu, mostrava uma situação quase ideal, com a Ucrânia como um estado apartado, mas as pessoas falando em russo sem ressentimentos, e todos se dando bem entre si. A tragédia da invasão é que ela destruiu esse relacionamento. Mas, mais uma vez, apesar de tudo, a Rússia não é a única ilha do mal no mundo. Esse mal está espalhado por toda parte.

A ideologia russa em busca de aliados

Quando a guerra estourou, muitos de meus conhecidos desejaram secretamente uma rápida vitória russa. “Vamos protestar por algum tempo”, pensaram, “mas logo tudo acabará”. A resistência ucraniana foi uma surpresa para muitos no Ocidente. Em segundo lugar, existe um velho preconceito da esquerda de que sempre que a União Europeia, os Estados Unidos ou a OTAN se envolvem, devemos ficar do outro lado. Isso, infelizmente, está errado. Veja a Segunda Guerra Mundial, quando a Rússia estalinista e o Ocidente estavam do mesmo lado. E, finalmente, fiquei surpreso com a quantidade de esquerdistas, especialmente na Alemanha, que falavam com uma arrogância vulgar e pragmática sobre a guerra e como ela poderia afetar o seu padrão de vida.

Eu penso que há margem para alguma negociação, e o que criou esse espaço foi precisamente o apoio ocidental à Ucrânia. Sem esse apoio, a Ucrânia já teria sucumbido há muito tempo. Mas essa estabilização está lentamente tornando a guerra cada vez mais sem sentido, e agora temos um paradoxo: essa resistência ucraniana bem-sucedida criou o espaço para um possível compromisso, negociação e paz. Os esquerdistas ocidentais constantemente me atacam, como o “bobo da corte do capitalismo” e assim por diante, mas aqui está: a resistência ucraniana, relativamente bem-sucedida até agora, pode agora abrir um espaço para possíveis negociações.

Talvez a Rússia não queira apenas um pedaço de terra, mas queira, em vez disso, uma expansão contínua e gradual. Esse expansionismo não vai acabar bem. A Rússia é um país suficientemente grande e maduro para ser capaz de dar um passo atrás. Caso contrário, abrirá as portas para novos populistas. Quem é o político não ucraniano mais popular na Ucrânia? É o primeiro-ministro da Polônia — mas essa é precisamente a face do novo conservadorismo, tendência que tem se fortalecido graças à incrível estupidez da esquerda.

Eu poderia detalhar, em pormenores, onde os ucranianos estão cometendo erros. Mas, apesar de tudo isso, eles foram atacados, e é uma espécie de milagre o quão sinceramente eles acreditam em sua liberdade e como lutam por ela. Ao resistir a Putin, eles estão fazendo um favor de longo prazo até mesmo à Rússia. Mas os russos não são o inimigo. A Rússia é uma nação profundamente traumatizada e dividida, cujo discurso oficial está se tornando profundamente ortodoxo. Diz: Não há morte, mas apenas imortalidade. Não há dor, apenas dever. Enquanto isso, a maioria das pessoas tem medo e seu consentimento não pode ser tomado pelo seu valor de face.

A ideologia das pessoas no entorno de Putin, e do próprio Putin, parece bastante clara. É neofascismo. Eles não usam esse termo, mas todo o arcabouço das visões imperialistas russas – com o direito de expandir agressivamente as fronteiras do Estado, a política interna em relação aos oligarcas, etc, essa mentalidade é o cerne do que chamamos neofascismo. A Rússia tem um histórico de afirmar ser uma força anti-imperialista, mas mesmo isso tem precedentes fascistas, na propaganda alemã usada para ocupar a Europa e justificar a ocupação como resistência ao imperialismo britânico e francês. O Japão usou a mesma retórica na região do Pacífico, por volta de 1939.

Se olharmos para Lenin e depois para Trotsky, eles se opuseram firmemente ao domínio russo sobre a Ucrânia. O próprio Putin sabe disso. O último texto escrito por Trotsky foi sobre a Ucrânia. É um belo texto, que parte da pergunta: a Ucrânia tem o direito de se separar de uma União Soviética dominada pela Rússia? A resposta de Trotsky é sim, absolutamente. A Ucrânia deveria ter mais autonomia, e se a Ucrânia se separar, e daí? É por isso que temos o que chamamos de “internacionalismo proletário”. As fronteiras nacionais simplesmente não importam! Agora, enquanto a Ucrânia está derrubando as estátuas de Lenin, Putin diz que a Rússia mostrará ao mundo a “verdadeira descolonização”.

Isso aponta para um perigo real. Putin, e as pessoas à sua volta, estão fazendo algo bastante astuto e muito perigoso. Eles não contam apenas com pensadores conservadores ortodoxos como Alexander Dugin e Ivan Ilyin; eles também usam uma linguagem esquerdista anticolonial, dizendo ao mundo que representam todos os povos oprimidos em sua luta contra a dominação imperialista colonial. E, infelizmente, isso tem algum apelo para algumas nações do terceiro mundo. Eu vejo isso como um sinal muito ameaçador. A promessa de pluralismo de Putin, de países deixando uns aos outros fazerem o que quiserem em seus territórios, é a base do acordo de Putin com o Talibã no Afeganistão. Desse modo a China pode fazer o que achar melhor com seus muçulmanos. Mas isso não é emancipação anti-imperialista; é realmente uma proposta para uma nova unidade neofascista. O meu pesadelo é que isso se conecte com a Nova Direita nos EUA e na Europa Ocidental, e acabemos com um eixo antiliberal. Isso me parece ser o perigo maior.

Quem são os membros emergentes desse novo eixo? São países como Irã e Coreia do Norte. Mais uma vez, isso não é apenas a Rússia, mas a Rússia está oferecendo ao resto do mundo um novo modelo: um modelo neofascista de falsa tolerância mútua entre regimes autoritários. No início, não levei esse modelo a sério. Dugin fala frequentemente sobre a “verdade russa” e como ela é incompatível com a “verdade ocidental”. Mas agora ele diz que a verdade russa é absoluta, divina e globalmente válida. Isso é muito perigoso, já que países como Brasil, Índia e África do Sul estão jogando um jogo duplo (apesar de eu gostar mais de Lula do que de Bolsonaro). Eles estão todos jogando com neutralidade, como a China. Mas isso é conflitante, quando se diz que é neutro significa que se está realmente tomando um determinado lado. Isso é exatamente o que acontece ao se dizer que é neutro na guerra da Ucrânia. E ao tomar o lado russo, não quer dizer tomar o lado do povo russo.

Evitando uma virada para pior

Existem dois tipos principais de fascismo. O primeiro, e eu o chamo ironicamente de “fascismo benevolente”, pode se perpetuar indefinidamente, sendo essencialmente autocontido. Este foi o regime de Mussolini até o final da década de 1930 – e o Ocidente, com Churchill e outros, ficou feliz em celebrar Mussolini (ou Franco, ou Salazar). Isso ainda não era fascismo expansionista. Mas então veio a marca alemã do fascismo, com sua lógica de guerra iminente e seu expansionismo.

Entre esses dois tipos de fascismo, a Rússia está mais próxima de um certo tipo de nazismo, por causa dessa necessidade de expansão e de criação de uma tensão permanente. Por que esta necessidade? Porque o fascismo não é simplesmente uma forma de totalitarismo. O fascismo é, para mim, uma forma de escapar dos antagonismos internos ao propor uma falsa noção de solidariedade das pessoas. A Rússia é uma nação extremamente dividida e severamente desigual, dividida entre a pobreza e a oligarquia. Mas se jogarmos a carta fascista da solidariedade nacional, podemos mascarar essa heterogeneidade e mobilizar o povo como uma unidade. Esse uso da emergência nacional é especificamente neofascista, na sua dependência de inimigos para consolidar a sociedade. Ainda tenho alguns problemas com o termo “fascismo”, graças à preguiça que faz a esquerda falar em fascismo sempre que vê algo que não gosta. Mas a ênfase de Putin no patriotismo e na unidade é uma grande tentação fascista.

Ainda assim, com todas as declarações amalucadas que se ouve na propaganda de Putin – que não há morte, mas apenas imortalidade, e assim por diante – de vez em quando, ele muda seu discurso para um tom mais pragmático. Mas isso não é motivo para algum otimismo particular, a questão de quem pode substituir Putin é outro grande problema. Posso imaginar um regime que seria ainda mais duro, então, por mais triste que seja dizer isso, o que todos devemos fazer é ser muito pacientes, muito cuidadosos e nos esforçar para evitar uma virada para o que seria algo ainda pior.

O que eu não quero é a linguagem do triunfalismo ocidental: “Destrua a Rússia, destrua Putin”. O que deveria tratar-se é da sobrevivência da Ucrânia como Estado soberano autônomo. Seria bom para a Rússia também, a longo prazo, e digo isso com sinceridade. Então, primeiro: a Ucrânia deve sobreviver. E segundo, com relação ao Ocidente, não vamos brincar com essa suposta superioridade moral. Nós, no Ocidente, também estamos em crise – num estado de autocrítica permanente, mas infrutífera. A menos que isso se torne real e produtivo, estamos perdidos.

Publicado originalmente na Meduza

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