Pai de vice-prefeito de Atalaia do Norte liderou grupo que atacou bases da Funai no Javari

Atualizado em 17 de junho de 2022 às 22:55
Foto principal (Reprodução): Rosário Galate e o filho, o vice-prefeito Giuliano; família é dona de madeireira e de empresa de embarcações

Madeireiro e dono de embarcações, Rosário Galate é, segundo líderes da região, autor de frases como “índio bom é índio morto”; ele também é amigo do atual prefeito, Denis Paiva (União-AM), e aliado do senador Eduardo Braga (MDB-AM).

“Esse Galate, quando ele era prefeito, ele dizia: índio bom é índio morto”, contou Djanin Kanamari, cacique da aldeia Massapê, a maior do Vale do Javari (AM), região conflituosa onde o indigenista Bruno da Cunha Araújo Pereira e o jornalista Dom Phillips desapareceram, no dia 05.

Os Galate em almoço com Eduardo Braga. (Foto: Facebook)

O líder dos autodenominados Tüküna se referia ao madeireiro Rosário Conte Galate, ex-prefeito e pai do atual vice-prefeito de Atalaia do Norte (AM), Giuliano Galate (PP-AM). Ambos são, além de aliados, amigos de Denis Linder Roges de Paiva (União-AM), que desde 2020 chefia o Executivo municipal, e do senador Eduardo Braga (MDB-AM).

“Esse cidadão não pode fazer isso, ele vai matar nós, ele tá matando lá a gente”. O depoimento foi feito em língua própria, durante uma audiência com o Ministério Público Federal (MPF), em 2018, e posteriormente traduzido. A tese de Doutorado de Danielle Moreira Brasileiro, apresentada no programa de pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), cita esses e outros trechos para ilustrar a situação vivida pelos povos isolados daquela localidade e por quem, como Pereira, dedicou a vida a protegê-los.

Admirado e respeitado pelos moradores, o indigenista foi um dos entrevistados para o trabalho. Segundo ele, a maior preocupação à época era o atendimento de saúde dos autônomos e recém-contatados, dada a vulnerabilidade epidemiológica daquelas populações. Basta uma gripe ou um resfriado para colocá-las em risco. Situações de violência foram relatadas por diferentes fontes.

Denis Paiva exibe foto com Rosário Galate. (Imagem: Facebook)

Elas contam que, à revelia dos Kanamari, Rosário Galate comandava a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ligada à Fundação Nacional do Índio (Funai). “Ele era anti-indígena, ele não respeitava nossos parentes”, afirmou Djanin. A Sesai e a Funai foram citadas por Korá, outro líder Kanamari, como propagadoras de preconceitos, despreparo e qualificação no atendimento. Hoje, quem trabalha no órgão é Giuliano Galate Junior, filho do vice-prefeito.

Silvio Cavuscens e João Lino de Oliveira Neves destacaram em um artigo, mencionado na mesma tese, que várias serrarias se instalaram na região na década de 80; cinco delas, anos depois, ainda se encontravam lá, abastecidas com madeira proveniente da Terra Indígena (TI) Javari, a segunda maior do país e a maior do planeta em número de isolados. Os proprietários seriam Vitor Magalhães, Floriano Graça, Francisco Carvalho de Oliveira, Rosário Conte Galate e Walter Paiva. Este último é pai de Denis, o prefeito.

Os Galate também são donos de uma empresa de locação de embarcações, com sede em Benjamin Constant (AM), município vizinho a Atalaia. A unidade está, desde 2015, autorizada a operar na prestação de serviços de transporte na Região Hidrográfica Amazônica, nos trechos interestaduais de competência da União e em rotas internacionais para Peru e Colômbia.

Operação contra o garimpo ilegal no Vale do Javari (AM). (Foto: Felipe Werneck/Ibama)

INDIGENISTA PARTICIPOU DE OPERAÇÃO QUE DESTRUIU BALSAS ILEGAIS

Bruno Pereira havia deixado a coordenação regional da fundação e assumido o setor de isolados e recém-contatados. Acabou exonerado do último cargo em outubro de 2019, por pressão de ruralistas ligados ao governo de Jair Bolsonaro (PL-RJ), depois de coordenar uma operação que expulsou centenas de garimpeiros da TI Yanomami, em Roraima.

Caminhões exibem mensagens sobre desaparecimento nos EUA. (Foto: Reprodução)

No mesmo período, ajudou a elaborar o plano conjunto com a Polícia Federal (PF) que flagrou sessenta embarcações ilegais explorando minérios no Javari. A Operação Korubo, como ficou conhecida, motivou a abertura de um procedimento por parte do MPF para identificar e punir os garimpeiros. O órgão alertou sobre a necessidade de um monitoramento constante na região.

Três dias depois da deflagração da Korubo, um grupo de parlamentares e representantes de garimpeiros foi recebido no Palácio do Planalto pelo ministro Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil, para reclamar da destruição de retroescavadeiras, o que motivara o bloqueio da rodovia como protesto contra a fiscalização. O encontro foi noticiado pela Agência Pública.

Pereira estava licenciado, como fez questão de frisar o presidente da Funai, Marcelo Xavier, ao se esquivar da responsabilidade pela tragédia, e atuando como colaborador da União das Organizações Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Conforme o jornal Brasil de Fato, em 2019 o indigenista denunciou o desmonte da Funai sob a gestão de Bolsonaro. “Servidores de carreira são retirados de cargos estratégicos”, alertou. A Funai está sendo tomada por interesses que não são dos índios”.

Coincidência ou não, o último post de Pereira no Twitter foi retuitando um caso de perseguição e assédio contra funcionários públicos, mas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Igualmente crítico ao governo, o agente Roberto Cabral Borges foi transferido do setor de operações da sede do órgão para a área administrativa.

Os protestos exigindo comprometimento do governo brasileiro nas investigações são tema do programa De Olho na Resistência:

ATAQUES ANTECEDEM DEMARCAÇÃO, MAS SE INTENSIFICARAM COM BOLSONARO

Nos últimos dez anos, ao menos 313 pessoas foram assassinadas na  Amazônia Legal em virtude de conflitos no campo, o que representa 77% do total de mortes (403) envolvendo disputas por terra ou água em zonas rurais do país. Os dados são da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e foram compilados pelo UOL. Em 2021, o número foi o maior registrado desde 2017: foram 29 mortes nos nove estados que compõem a região (os do Norte mais o Mato Grosso e o Maranhão).

Um dos casos emblemáticos é o de Maxciel Pereira dos Santos, assassinado em 2019 em Tabatinga (AM), com um tiro no pescoço. Funcionário da Funai e, assim como Pereira, defensor dos indígenas do Javari, ele trabalhava nas operações de combate à caça, pesca e garimpo ilegal no território. Até hoje, não há explicações sobre a autoria. A Repórter Brasil fez um especial sobre o crime.

Mapa do local onde Dom e Bruno desapareceram. (Imagem: Univaja)

A TI do Vale do Javari se transformou, sob Bolsonaro, num dos focos de invasão de garimpeiros, ladrões de madeira, pescadores, proselitistas religiosos, traficantes internacionais e caçadores em busca de tracajá (tartaruga de água doce) e pirarucu nas calhas dos rios. Os ataques intermitentes, contudo, antecedem a demarcação do território, oficializada em 2001.

Um ano antes, um grupo autodenominado “os sem-rios” atracou na base Ituí e Itacoaí, em três grandes embarcações, mais pequenos barcos a motor de popa, disposto a atear fogo na principal base da Funai. Eram 320 homens, liderados por Rosário Galate, como mostrou a reportagem da Pública.

O movimento começou como uma manifestação de protesto pelos rios. Mas, num dos barcos, estavam invasores armados e com um arsenal de coquetéis-molotovs. O delegado federal Mauro Sposito, então chefe da delegacia da PF em Tabatinga, e o sertanista Sydney Possuelo conseguiram interceptar o barco principal e evitar que o grupo chegasse ao porto.

Ação do Ibama e da PF flagrou balsas ilegais no Vale do Javari. (Foto: Divulgação)

PROCURADORES DO MUNICÍPIO DFENDERAM “PRINCIPAL SUSPEITO”

Os procuradores municipais de Atalaia do Norte, Ronaldo Caldas da Silva Maricau, e de Benjamin Constant, Davi Barbosa de Oliveira, chegaram a atuar como advogados de defesa de Amarildo da Costa de Oliveira, de 41 anos, conhecido como Pelado. O homem foi detido na semana passada, em uma abordagem por posse de drogas e munição. Ele é apontado como suspeito de envolvimento no desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips.

Seguidores questionam prefeito nas redes sociais. (Foto: Reprodução)

Denis Paiva, cuja capa no Facebook é uma montagem dele estendendo as mãos para Rosário Galate, foi cobrado nas redes sociais. Diante da repercussão negativa, os dois deixaram o caso. Antes, porém, a Prefeitura de Atalaia publicou nota informando que Maricaua foi procurado pela família de Amarildo para atuar como advogado particular.

Para a administração municipal, não haveria qualquer impedimento ou incompatibilidade que impedisse Ronaldo de exercer suas atribuições legais. “Vale ressaltar que o município possui um número limitado de advogados, com apenas dois profissionais do ramo residindo na cidade”, disse o documento.

Também nas redes, seguidores comentaram que o prefeito teria visitado “Pelado” no dia da prisão. A assessoria de imprensa justificou que Paiva foi em “todas as casas como sempre faz”, com o objetivo de levar ajuda da Casa Civil. “Quando chegamos na comunidade, a Polícia Militar já tinha abordado e feito os procedimentos com o Pelado”, afirmou.

“INDÍGENAS ESTÃO FAZENDO PAPEL DO ESTADO”, DIZ LÍDER QUE ACOMPANHOU PHILLIPS E PEREIRA

De Olho nos Ruralistas teve acesso a áudios de um dos líderes Kanamari que acompanhava Bruno Pereira e Dom Phillips no Vale do Javari, divulgados também pelo site Amazônia Real. Entrevistado pelo jornalista do The Guardian pouco antes do desaparecimento, ele não se identificou à reportagem, por temer represálias, uma vez que a situação na região continua tensa. Desde que o desaparecimento foi noticiado, os moradores acreditam em emboscada e fazem um trabalho de busca independente dos órgãos oficiais, que, denunciam, demoraram a se mobilizar.

Agentes fazem buscas por Phillips e Pereira. (Foto: Divulgação)

“Bruno entrou em contato com toda a equipe que estava fazendo o monitoramento do território, ou seja, fiscalização de seu próprio território, que o Estado não faz, e deveria fazer”, conta, ao explicar a missão do indigenista. “Ele iria buscar mais recursos para que pudéssemos aumentar essa equipe, com vinte ou mais homens”, diz. “Só assim poderíamos estar mais seguros: um protegendo o outro”.

A hipótese de emboscada, que se fortalece conforme o tempo passa, foi levantada porque “Pelado”, apontado como suspeito, estava entre os homens que teriam ameaçado o grupo, ao passar por ali com uma embarcação mais potente. “Quando o motor que vinha mais atrás, 40 HP, vai se aproximando deles, eles levantam duas armas dizendo: ‘vocês vão levar tiro’, para os indígenas de fiscalização”.

Os invasores, acrescenta, ostentavam várias munições. “Segundo os indígenas, nunca eles viram alguém pegar pirarucu com trinta cartuchos nem de baleeira”, relatou a fonte. “Ali ele estava exatamente mapeando os caminhos de Bruno”, opinou.

A situação ocorreu pouco antes de Pereira e Phillips deixarem a comunidade de São Rafael, no dia 05, para a viagem de duas horas até Atalaia. O líder disse que na ocasião relatou ao repórter britânico como os povos originários estavam reagindo contra “essa devastação que o Estado está fazendo” e como estavam resistindo à invasão de pescadores e caçadores:

 — Tudo isso ele tinha em mãos, um dossiê. E fora mim ele entrevistou todos os parentes para fazer um trabalho transparente e divulgado a nível nacional e internacional. Eles (os invasores) sabiam que estávamos filmando, batendo fotos, sabiam que iriam ser incriminados.

Na avaliação do Kanamari, os povos originários e ativistas como Pereira estão fazendo o papel do Estado. “A própria Funai impede os indígenas de fazerem a fiscalização e o monitoramento de seu território, os impede de proteger sua própria casa”, critica. Sem logística, sem estrutura e com poucos funcionários, ele avalia a atuação das forças policiais no local como ineficaz. “A força policial que existe nas bases é para proteger o funcionário da base; não é pra proteger o território”.

Embarcações percorrem rios da região atrás de indigenista e jornalista. (Foto: Divulgação)

— Quem está protegendo os índios isolados, o território? Eles não fazem fiscalização, não andam sequer oitocentos metros fora daquela bendita base. Os índios hoje que dão proteção àquela base do Itaquaí a qual a gente estava próximo. Eles não identificam ninguém, não sabem quem entra, nem quem sai. A verdade é essa. E só quando acontece uma fatalidade que a força policial sai para fazer buscas.

A afirmação é corroborada pela Univaja, que atenta para informações inverídicas sobre o caso repassadas pela Funai. “Os autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)  nº. 709, que tramitam no Supremo Tribunal Federal, evidenciam o quanto, atualmente, a Funai está despreparada, há falta de equipamentos e recursos humanos”, diz a organização, em nota. “Consequentemente, há um imenso descaso com as atividades de sua responsabilidade, como a fiscalização e o monitoramento territorial”.
Por Bernardo Fialho, que é estudante de Direito na UFRJ e pesquisador, com foco em sindicatos e movimentos sociais. |

Por Mariana Franco Ramos, que é jornalista. ||

Publicado originalmente no site De Olho nos Ruralistas

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