PEC Kamikaze violou também a anterioridade eleitoral. Por Lenio Streck e Matheus Pimenta

Atualizado em 22 de fevereiro de 2023 às 16:44
PEC Kamikaze é aprovada, e governo poderá turbinar benefícios sociais na eleição – Foto por: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Por Lenio Luiz Streck e Matheus Pimenta de Freitas

O abstract poderia ser: “Como morrem as constituições”.

Em artigo publicado na semana passada, defendemos que a matéria veiculada na PEC Kamikaze — agora promulgada sob a forma de Emenda Constitucional nº 123 — era flagrantemente inconstitucional. Terrivelmente inconstitucional.

Afirmamos que tanto a Constituição quanto a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal condenam, em uníssono, a tramitação de propostas de emenda à Constituição tendentes a abolir, mitigar ou minimizar a proteção às cláusulas pétreas, elencadas nos incisos do artigo 60, §4º, da Carta.

Apontamos, em sequência, que era justamente essa a hipótese da PEC Kamikaze, cuja matéria afetava as cláusulas pétreas da Constituição, na medida em que:

  1. buscava incluir, por vias oblíquas, uma terceira modalidade de estado de exceção na Constituição Federal, sem as restrições previstas para o Estado de Sítio e de Defesa, em manifesta ameaça aos direitos e garantias individuais dos brasileiros;
  2. mitigava a proteção dos direitos sociais, que ficarão descobertos, em alguma medida, com o saque não previsto dos cofres públicos;
  3. afetava o direito ao voto livre, que pressupõe tanto paridade de armas entre os candidatos, quanto que a escolha seja tomada sem vícios; e
  4. enfraquecia o pacto federativo.

Hoje, incrédulos com a aprovação da PEC Kamikaze, escrevemos o presente texto para complementar o primeiro. Um necessário Post Scriptum. Demonstraremos que a promulgação da PEC Kamikaze rompeu outra cláusula pétrea igualmente prevista no texto constitucional, qual seja, o princípio da anterioridade eleitoral.

Esculpido no artigo 16 da Constituição, o princípio da anterioridade ou anualidade eleitoral preceitua que as normas que alterarem o processo eleitoral não devem se aplicar às eleições que ocorrerem até um ano da data do início de sua vigência.

A ratio da referida norma constitucional, com efeito, pode ser deduzida sem grande esforço intelectual. Ora, da mesma forma que não parece justo permitir que o dono da bola modifique, no meio do jogo, as regras preestabelecidas para a partida, igualmente não parece certo permitir que o detentor do poder o exerça, nas vésperas da eleição à qual concorre, com a finalidade de se promover eleitoralmente.

Anterioridade eleitoral, desse modo, relaciona-se à paridade de armas no pleito, à não surpresa nas eleições, à liberdade do voto e, em último grau, à própria democracia. Anterioridade é o que vem antes, se nos permitem uma platitude – que é transformar ignominias em obviedades.

Coberta de razão, portanto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal — sim, existe jurisprudência nesse sentido – assevera que o princípio da anterioridade eleitoral compõe o rol das cláusulas pétreas (artigo 60, §4º da CF), e que, assim, não pode ser mitigado nem mesmo por meio de emenda constitucional, senão vejamos:

LEI COMPLEMENTAR 135/2010, DENOMINADA LEI DA FICHA LIMPA. INAPLICABILIDADE ÀS ELEIÇÕES GERAIS 2010. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL (ART. 16 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA). I. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ELEITORAL. O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, ESSAS REGRAS TAMBÉM COMPÕEM O ROL DAS NORMAS DENOMINADAS CLÁUSULAS PÉTREAS e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise a aboli-las. O art. 16 da Constituição, ao submeter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, constitui uma garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos. Precedente: ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. em 22.3.2006. (RE 633703, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, DJe de 18/11/2011)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º DA EC 52, DE 08.03.06. APLICAÇÃO IMEDIATA DA NOVA REGRA SOBRE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS ELEITORAIS, INTRODUZIDA NO TEXTO DO ART. 17, § 1º, DA CF. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI ELEITORAL (CF, ART. 16) E ÀS GARANTIAS INDIVIDUAIS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, CAPUT, E LIV). LIMITES MATERIAIS À ATIVIDADE DO LEGISLADOR CONSTITUINTE REFORMADOR. ARTS. 60, § 4º, IV, E 5º, § 2º, DA CF. […] 3. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral (ADI 354, rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 12.02.93). […] 5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). (ADI 3685, Relator(a): ELLEN GRACIE, DJ 10-08-2006)

A esse respeito são elucidativas as lições de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gonet Branco:

O julgamento da ADI 3.685, rel. Min. Ellen Gracie (j. em 22‑3‑2006), representa um marco na evolução jurisprudencial sobre o art. 16 da Constituição. […]
Em primeiro lugar, entendeu‑se que o conteúdo semântico do vocábulo “lei” contido no art. 16 é amplo o suficiente para abarcar a lei ordinária e a lei complementar, assim como a emenda constitucional ou qualquer espécie normativa de caráter autônomo, geral e abstrato. Assim, se na ADI 3.345 o Tribunal já havia aferido a constitucionalidade de uma Resolução do TSE em relação ao artigo 16, agora o fazia tendo como objeto uma emenda constitucional. O entendimento vem complementar a interpretação da palavra “lei” já efetuada pelo Tribunal no julgamento das ADIs 718 e 733, em que se definiu que tal lei seria aquela emanada da União no exercício de sua competência privativa de legislar sobre direito eleitoral (artigo 22, I, da Constituição).

Em segundo lugar, passou‑se a identificar no artigo 16 uma garantia fundamental do cidadão‑eleitor, do cidadão‑candidato e dos partidos políticos. […] Nesse sentido, consolidou‑se nesse julgamento a noção de que o artigo 16 é garantia de um “devido processo legal eleitoral”, expressão originada da interpretação das razões do voto do Ministro Sepúlveda Pertence nos julgamentos das ADIs 354 e 2.628.

Ambos os entendimentos levaram à conclusão de que O ART. 16 CONSTITUI CLÁUSULA PÉTREA e, dessa forma, é oponível inclusive em relação ao exercício do poder constituinte derivado. (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2022, pp. 932 e 933)

Não parece difícil perceber, nesse contexto, que o princípio da anterioridade eleitoral, por ser cláusula pétrea, deveria representar obstáculo intransponível à tramitação da PEC Kamikaze.

Isso porque, ao permitir a distribuição pelo governo — cujo chefe concorrerá à reeleição — de todos os benefícios nela previstos, às vésperas da disputa, a referida proposta modificou abruptamente o processo eleitoral de 2022. Antes da PEC, não se poderia distribuir benesse alguma neste ano. Depois da PEC, passa-se a poder!

O dono da bola, nos acréscimos do segundo tempo, mudou a regra do jogo e marcou um pênalti a seu favor. E ainda pensa em amarrar as mãos do goleiro…!

Alterações casuísticas como essa — rememore-se que as “bondades” da PEC Kamikaze só valerão em 2022 — são justamente o que o princípio da anterioridade busca coibir, conforme já reconhecido pelo STF sob a relatoria do ministro Celso de Mello, in litteris:

[…] PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ANTERIORIDADE ELEITORAL: SIGNIFICADO DA LOCUÇÃO “PROCESSO ELEITORAL” (CF, ART. 16). – A norma consubstanciada no art. 16 da Constituição da República, que consagra o postulado da anterioridade eleitoral (cujo precípuo destinatário é o Poder Legislativo), vincula-se, em seu sentido teleológico, à finalidade ético-jurídica de obstar a deformação do processo eleitoral mediante modificações que, casuisticamente introduzidas pelo Parlamento, culminem por romper a necessária igualdade de participação dos que nele atuam como protagonistas relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes, com inovações abruptamente estabelecidas, a garantia básica de igual competitividade que deve sempre prevalecer nas disputas eleitorais. Precedentes. – (ADI 3345, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, DJe 20/08/2010)

Por qualquer ângulo que se examine a questão, a conclusão parece lógica: a PEC Kamikaze não poderia ter sido promulgada, pois a matéria nela veiculada feriu — além de todas as outras — a cláusula pétrea referente ao princípio constitucional da anterioridade eleitoral.

Mas o foi. Na noite de 14 de julho de 2022, a PEC Kamikaze foi promulgada. Com pompa e circunstância. Mais pompa do que circunstância, diga-se.

Que venham as ADIs. Para salvar a Constituição do processo de mutação irracional a que foi submetida.

(Texto originalmente publicado em CONJUR)