Pedido para regular constelação familiar no Judiciário deve resultar em proibição

Atualizado em 4 de março de 2024 às 22:02
Conselho Nacional de Justiça. Foto: Divulgação

Por Alex Tajra

A ação no Conselho Nacional de Justiça que pede a regulamentação da prática de constelação familiar no Poder Judiciário deve resultar na proibição desse método em determinados processos. O pedido de providências que trata do tema foi apresentado em março de 2019 pela Associação Brasileira de Constelações Sistêmicas.

Na análise do pedido, o relator da matéria, juiz federal Marcio Luiz Freitas, hoje ex-conselheiro, não só entendeu que não há espaço para a regulamentação como votou para que a prática seja proibida em casos de violência doméstica de gênero ou contra crianças. Segundo ele, o uso desse método pode causar consequências graves, como a revitimização de mulheres.

Depois de Freitas ter proferido seu voto, em outubro de 2023, a pauta foi analisada novamente em dezembro no Plenário Virtual do CNJ e, conforme apuração da revista eletrônica Consultor Jurídico, cinco conselheiros acompanharam integralmente o voto do relator e uma conselheira o acompanhou parcialmente. O teor dos votos não é público porque, como o julgamento ainda não acabou, os julgadores podem alterar suas posições.

A primeira conselheira a se manifestar sobre o tema foi a juíza federal Daldice Santana, que, à época, presidia a já extinta Comissão Permanente de Acesso à Justiça e Cidadania. De acordo com seu primeiro posicionamento, em parecer pela não regulamentação, os tribunais têm autonomia para fazer esse tipo de normativa, que não cabe ao CNJ.

A comissão presidida por Daldice foi sucedida pela Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos, e, posteriormente, seu presidente, o conselheiro Marcus Vinícius Jardim, acompanhou a posição da conselheira.

Não com dinheiro público

Em seu voto, Marcio Luiz Freitas endossou os posicionamentos contrários à regulamentação da prática pelo CNJ e ainda propôs que a resolução do Conselho que trata de violência doméstica seja alterada para proibir a constelação familiar nesse tipo de ação.

“Aqui estamos tratando de uma política pública. Não nos cabe aqui dizer se a constelação familiar é boa ou má, se deve ou não ser aplicada. O nosso âmbito é mais limitado. No âmbito do Judiciário, com recursos públicos, é possível e conveniente se adotar esse tipo de atividade? E nesse aspecto, com todo o respeito e vênia a quem tem entendimento diferente, penso que alguns aspectos têm de ser levados em conta e que levam à necessidade de se ser mais estrito nessa regulamentação.”

Para o relator, não só o aspecto científico da constelação é questionável como a sua fundamentação teórica, que trata a família e seus aspectos como questões imutáveis, é incompatível com o Judiciário. “Isso é especialmente grave quando a gente pensa no encaminhamento de pessoas vítimas de crimes, especialmente mulheres vítimas de crime de gênero ou crianças”, disse ele em seu voto.

O juiz federal Marcio Luiz Freitas. Foto: Divulgação

Além de rejeitar a regulamentação, Freitas votou para que seja feita uma alteração no artigo 9 da Resolução 254 do CNJ, que trata de violência institucional (casos de revitimização, por exemplo). A proposta do conselheiro é que o parágrafo III passe a ter a seguinte redação:

“É vedado no âmbito dos tribunais e órgãos do Judiciário o uso de constelação familiar sistêmica ou outra técnica fundada em estereótipos a respeito do papel das mulheres ou da configuração familiar, bem como que tenha possibilidade de submeter a vítima de crimes a situações de revitimização”.

Para deixar claro que não se está “vedando qualquer tipo de programa”, o conselheiro também propôs que, no parágrafo IV, seja incluído o seguinte texto:

“O encaminhamento de vítimas de violência a procedimentos alternativos de resolução de conflitos deve observar os seguintes requisitos: a) prévia avaliação de equipe especializada que assegure o consentimento livre e esclarecido da vítima; b)a inexistência de indicadores de que a técnica poderá acarretar novos riscos para a vítima e seus familiares; c) os profissionais que aplicarão a técnica deverão ser especialmente capacitados para compreender e intervir nos casos de violência de gênero contra mulheres, sem estereótipos ou revitimização”.

O que se busca com o voto, diz o conselheiro, é “dar um passo à frente” e evitar que as pessoas que tiveram seus direitos violados em crimes sejam novamente vitimizadas nos processos judiciais.

Os conselheiros Vieira de Mello Filho, Mauro Pereira Martins, Richard Pae Kim, Pablo Coutinho Barreto e Marcos Vinícius Jardim Rodrigues acompanharam o voto do relator. A conselheira Salise Sanchotene também votou pela não procedência do pedido de regulamentação, mas divergiu quanto à redação do artigo 9ª da Resolução 254. O pedido deve ser pautado no Plenário físico para que o jugalmento seja concluído.

O que está em jogo

A constelação familiar, também chamada de constelação sistêmica familiar, autodenomina-se uma terapia — mesmo sem aval dos conselhos de Psicologia — e usa subjetividades espirituais e metafísicas para supostamente encontrar a razão e a solução para os conflitos familiares. Suas bases foram delineadas nos anos 1980 pelo autointitulado “terapeuta” alemão Bert Hellinger.

Seu uso já aparece no Judiciário brasileiro há mais de uma década, principalmente em casos de Direito de Família (incluindo violência doméstica e contra crianças), mas ganhou os holofotes após críticas enviadas por pesquisadores ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, no final de agosto do ano passado, e uma nota técnica do Conselho Federal de Psicologia criticando seu uso como terapia.

A prática tem sido associada à solução alternativa de conflitos, mesmo sem respaldo do CNJ. Nas constelações, um “constelador” atende ao “constelado” por meio de uma dramatização (por vezes com atores, mas também com bonecos e outros objetos) a fim de simular sua estrutura familiar e, dessa forma, apontar os problemas e soluções de determinado litígio.

O precursor da constelação familiar no Direito brasileiro, o juiz Sami Storch, do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), registrou a patente do termo “Direito Sistêmico” no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) em 2017, e detém a marca até 2027. Storch ingressou como parte interessada na ação que corre no CNJ.

O juiz Sami Storch. Foto: Divulgação

Nas jurisprudências em que se encontra o uso da constelação, aparece um pouco de tudo: casos de violência doméstica em que o acusado é intimado a participar da prática e, quando a recusa, a negativa é citada em sentença para negar a apelação; argumentações metafísicas em casos de divórcio litigioso, ações de alimentos ou de guarda; “perícias” que têm como base a constelação familiar em casos de aposentadoria por invalidez, entre outros.

Os casos mais graves envolvem violência doméstica de gênero. Sob a perspectiva da constelação (muitas vezes os próprios juízes são “consteladores”), as mulheres que sofrem violência passam por nova violação de direitos por causa do sexismo incrustado na “teoria”, que as coloca como hierarquicamente inferiores aos homens. Em situações com violência doméstica contra crianças, acontece o mesmo, posto que os filhos são tidos como inferiores aos pais.

Para advogados e especialistas entrevistados pela ConJur, não só há uma série de problemas de ordem social a partir do uso da constelação no Direito Familiar, como a prática também contamina o instituto da mediação, de suma importância para a celeridade processual. A “teoria” ainda coloca a figura da mulher como inferior ao homem (lei da hierarquia), o que reforça sua vulnerabilidade como parte nos processos de família e viola princípios básicos do Direito, como o da isonomia.

Originalmente publicado na Conjur
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