Quem é Giorgia Meloni, neofascista que pode ser primeira-ministra da Itália

Atualizado em 26 de setembro de 2022 às 6:52
Giorgia Meloni e a chama símbolo do fascismo, originada no Movimento Social Italiano e retomada por outros partidos também de extrema direita como o francês Rassemblement National. Foto: Jose Antonio/Wikimedia Commons

“Sou uma mulher, sou uma mãe, sou cristã”. O discurso foi mixado por um DJ que queria atacar a autora, Giorgia Meloni, líder do partido neofascista Fratelli d’Italia. O rap viralizou, mas em favor da extremista. Com a queda do governo Draghi, Giorgia pode se tornar a próxima primeira-ministra da Itália.

Em uma vitória histórica, o partido fundado por Giorgia Meloni e seus aliados conservadores conquistaram ampla vantagem na Câmara dos Deputados e no Senado, com 44% dos assentos em ambas as casas. O Irmãos da Itália consolidou-se como maior força e, segundo as pesquisas de boca de urna, obteve entre 26% e 26,1% dos votos, respectivamente, muito acima dos aliados do Liga, de Matteo Salvini (8,9%-8,8%), e do Força Itália (8%-8,2%), de Silvio Berlusconi.

Ascensão

Nas últimas eleições municipais de 12 de junho, a correlação de forças já indicava uma mudança. O Fratelli d’Italia, ou Irmãos da Itália, partido classificado no país ora como pós, ora como neofascista, ficou a frente de seu concorrente de extrema direita inclusive no norte, bastião histórico da Liga. Foram 26 vitórias.

“Um forte sinal de mudança na centro-direita. Uma metamorfose”, segundo a revista L’Espresso. O termo “centro-direita” é, no mínimo, um eufemismo.

Se em 2017, o partido fundado pela romana de 45 anos em 2012 contava com entre 5% e 6% das intenções de voto, agora ele está em primeiro lugar, entre 22% e 24%, um pouco à frente do tradicional Partido Democrata, que tem 21%.

“Coerência”

Diversos analistas apontam como uma das chaves da ascensão dos herdeiros do Duce não aceitar integrar a coalizão de “união nacional” chefiada por Mario Draghi, ao contrário do que fez A Liga de Matteo Salvini.

O último terminou se desgastando, cedendo lugar aos Fratelli d’Italia. “Queremos governar sob as nossas condições. Nosso objetivo não é fazer a Itália viver, mas revirá-la”, disse Giorgia Meloni num discurso.

Sua aposta é na “coerência” de seu partido. Em um discurso contraditório no Parlamento há um ano, ela denunciava a ausência de uma oposição parlamentar, ao mesmo tempo em que se apresentava como a única. Sua decisão de não integrar o governo era inclusive, segundo ela, a condição para que o país não se tornasse a Coreia do Norte.

“A verdade é que não tínhamos escolha. Por uma questão não apenas de coerência, mas de seriedade. Os cidadãos devem decidir em relação aos partidos que não mantêm sua palavra”.

“Há uma grande questão política: se Fratelli d’Italia entrasse em seu governo, a Itália seria protagonista de uma dupla anomalia. Único país europeu a ter uma pessoa que nem direta nem indiretamente foi legitimada pelo voto popular e única democracia no mundo sem uma oposição parlamentar e que teria aproximado sinistramente a Itália mais da Coreia do Norte do que do ocidente”.

Sua eloquência e tom incisivo encarnava a raiva de uma parte crescente da população italiana e traduzia a insatisfação daqueles que não concordavam com a designação do então primeiro-ministro, ainda que a constituição do país assim permitisse. Eles queriam uma escolha direta.

“O princípio de coerência é muito importante para nós. Somos um partido que diz de modo quase entediante sempre as mesmas coisas”, declarou em entrevista, mostrando como a “autenticidade” é uma das principais táticas dos novos líderes de extrema direita.

“Feminilidade”

Ser mulher é outro fator decisivo para explicar sua ascensão. “Meloni é a única líder de partido mulher na Itália e adota posições muito conservadoras sobre gênero, adoção, casamento gay e a família tradicional. Não é considerada uma antifeminista, tampouco como uma inimiga das mulheres”, diz a jornalista Paola di Caro no Corriere della Sera.

Portanto, solitária na corrida ao poder, diferente dos demais, encarnando a “imagem de mulher forte e independente, capaz, aceitável humanamente para uma grande parte do eleitorado” de direita.

“Não há nada de feminista nela, claro, mas uma novidade em relaçao ao machismo infatilizador de um Berlusconi ou do machismo adolescente de um Salvini”, considera Susanna Turco na revista L’Espresso.

Giorgia Meloni



De acordo com seu artigo, Meloni não é apenas apreciada pelas mulheres de direita do país, mas adorada. “Giorgia navega num mundo muito difícil para as mulheres, é uma líder política, não uma empresária. Eu sou uma empresária e é por isso que é difícil me convencer, mas ela me inspira”, diz Fulvia à jornalista.

A estratégia de Meloni é a mesma da francesa Marine Le Pen. A aposta na imagem de mulher, mãe, ao mesmo tempo que branca e nacional, como forma de fazer desaparecer a repugnância que sua ideologia provoca na maioria da sociedade.

Quase uma mãe do povo, vinda de um bairro popular de Roma, sua defesa é supostamente das classes populares. “FDI (Fratelli d’Itália) pertence aos que se levantam às cinco horas da manhã olhando para o céu para compreender qual será seu dia de trabalho e àqueles cujas mãos estão desgastadas por sua labuta”.

“Moderação”

Giorgia milita no neofascismo desde a adolescência. Foi aos 15 anos que ela entrou no Movimento Social Italiano, fundado em 1946 depois que o Partido Nacional Fascista foi proibido. Dissolvido em 1995, o movimento deu lugar à Aliança Nacional, que continuou a contar com o apoio de Meloni, sua líder, aos 27 anos.

Apesar de seu percurso, Giorgia rebate constantemente as classificações que lhe são feitas de “fascismo” e “extrema direita”. Ela prefere ser apresentada como direita conservadora e moderada, “extremamente rigorosa”, “extremamente concreta”.

Ex-ministra do conservador Silvio Berlusconi de 2006 a 2018 e apoiadora de seu partido, Forza Itália, e da Liga até as eleições de 2018, ela diz que quer governar com a centro-direita e promover um liberalismo econômico. “O mérito é o combustível do mundo”. Se as mulheres de direita, empresárias como Fulvia, se identificam com ela é também porque seu discurso se volta para os empresários e contra medidas sociais como o auxílio cidadão implantado pelo Movimento 5 Estrelas.

Ela não é completamente oposta a uma função social do Estado, desde que ele se restrinja “aos italianos”, como sua homóloga francesa Marine Le Pen.

Suas referências, no entanto, vão muito além do centro. Nas redes sociais, compartilha mensagens como “avante, patriotas”, assim como homenagens a policiais mortos. Recentemente, publicou um vídeo de um homem branco sendo agredido por um homem negro em praça pública. “A quantas outras agressões e violências deveremos assistir para admitir que na Itália há um enorme problema de segurança? Não há tempo a perder”. Ela convoca os “patriotas” a não terem medo.

Na pandemia, mais um posicionamento clássico da extrema direita. Oposição às restrições “inúteis” e “confusas” como exigência de passaporte sanitário, que só “prejudicam a nossa economia sem realmente impedir os contágios”. Defende que se coloque apenas “os anciãos e frágeis” em “segurança”.

“A escolha do governo Draghi produziu um desastre sem precedentes: fazer os italianos acreditarem que a vacinação traria imunidade contra Covid e que bastaria o passaporte sanitário para ter a ‘garantia de se encontrar entre pessoas não contagiosas’”.

“Esperança e companhia ou estão prontos para fazer os italianos passarem o enésimo inverno de sacrifício?”, pergunta em suas redes.

Ainda que suas preocupações “concretas” com o quotidiano dos italianos pareçam diluir sua ideologia, seus correligionários não deixam dúvidas.

“As declarações de alguns expoentes do partido, como a senadora Daniela Santanché, que admite, descomplexada, ter ‘um busto de madeira muito lindo do Duce na minha cabeceira’, assim como diversas investigações jornalísticas que mostram as ligações entre os Fratelli d’Italia e células neofascistas, estão frequentemente presentes nas operações de distribuição de folhetos do partido”, lembra Francesco Maselli, jornalista italiano em coluna no jornal L’Opinion.

Perguntada diversas vezes sobre sua visão de Benito Mussolini, Meloni se restringe a dizer que era uma personalidade “muito complexa”.

Internacional

Como Marine Le Pen na França, Giorgia Meloni fala pouco de Bolsonaro na Itália. Mas sua eleição à presidência do Brasil foi uma boa notícia para a deputada, que reivindicou a extradição de Cesare Battisti. “Com Bolsonaro no Brasil se abre uma vala na rede internacional do radical chic que por décadas protegeu o vermelho Cesare Battisti”.


Ainda que seus aliados preferenciais Salvini e Berlusconi sejam próximos de Vladimir Putin, ela quer respeitabilidade na área internacional e escolheu por enquanto a distância do partido Rassemblement National, de sua homóloga francesa Marine Le Pen, e do alemão Alternative Für Deutschland no Parlamento Europeu. Ela prefere o conservador PiS (Direito e Justiça) da Polônia, um modo de dizer que apoia a posição da OTAN contra a Rússia e de que está do lado da Ucrânia.

Rivais e aliados

Segundo jornalistas locais, Matteo Salvini e Silvio Berlusconi, aliados potenciais de Giorgia Meloni, tentam encontrar um meio de formar uma coalizão sem ela, mesmo se seu partido ganhar as próximas eleições. “O risco, para a líder dos Irmãos da Itália, é dever fazer uma campanha muito dura, com os adversários de esquerda utilizando o espantalho do retorno ao fascismo para mobilizar contra ela, e seus aliados que trabalham para derrubar sua liderança”, escreve o correspondente em Roma Francesco Maselli.

Segue o desfile de selfies e sorrisos por onde ela passa, estrategicamente pensado. “Fiquem em fila indiana e ativem a função ‘selfie’ nos seus celulares, deem-no para mim que eu tiro a foto e assim irá mais rápido”, diz ela num comício, como conta Susanna Turco.

Na Europa, muitos estão assustados com a perspectiva de Meloni no comando da Itália, país fundador da União Europeia. Com razão.

Cinco anos atrás, Meloni era amplamente subestimada pela imprensa italiana, quando já dizia que queria ser primeira-ministra. O tempo passa, o neofascismo fica. Ele se renova e se adapta, um pouco. Se ela será a primeira mulher a presidir o Conselho do país, a correlação de forças no Parlamento e o resultado das eleições o dirão. Um fenômeno, no entanto, já ocorreu e continua em expansão em mais uma sociedade: a “desdiabolização” do neofascismo.