Servidor público diz como investigou e prendeu o feminicida de sua irmã

Atualizado em 24 de janeiro de 2021 às 18:03
Servidor público diz como investigou e prendeu o feminicida de sua irmã. Foto: Reprodução/Twitter

O servidor público Ricardo Fulgoni publicou um fio (thread) comovente, triste e muito real sobre o feminicídio que tirou a vida de sua irmã.

Ele conta sobre o criminoso, um ex-namorado dela, e como o machismo reforça esse tipo de crime.

Leia, do Twitter:

“QUANDO TIVE DE INVESTIGAR E PRENDER O FEMINICIDA DA MINHA IRMÃ

Priscilla e eu sempre fomos muito ligados. Minha primeira memória é do dia que ela nasceu (08/11/89), Na véspera tirei essa foto com mamãe. Meses depois, essa outra, com papai. Eu tinha dois anos e meio.+

Crescemos juntos, apoiando-se diante de todo o sofrimento de crianças do morro, na periferia de Volta Redonda, filhos de pais separados, com mãe doente (aposentada por invalidez desde os 21 anos de idade).+

Eu estava vencendo a pobreza. No início de 2006 eu tinha acabado de comprar esse Uno, ano 1990, por R$6.700,00, financiado em 5 anos. Era o 1º carro da história da minha família. Finalmente meus pais e avós começavam a acreditar que era possível vencer por meio da educação.+

Mas eu queria mais. Eu estava colocando o dedo na cara do mundo e dizendo: ‘eu vou vencer a pobreza’! Afrontoso, o rapaz! entrei para a faculdade de Direito. Pelo PROUNI. Embora assalariado, a renda familiar per capta permitia o benefício. Ainda bem, pois pagar seria impossível.+

A Priscilla sempre teve dificuldades na escola. Mas me via como exemplo. Pediu ao meu pai para colocá-la numa escola mais forte, perto da casa dele (em Barra Mansa). Às vésperas das aulas começarem ela disse ao meu pai: ‘Vou estudar pra ser igual ao meu irmão!’ Não houve tempo.+

Em 24/03/2006 eu havia acabado de chegar do trabalho e estava me preparando para a faculdade. Meu tio-avô entrou esbaforido: ‘Vamos lá que o Claudinho machucou muito a Priscilla’. Minha avó e minha bisavó, que estavam comigo na sala, levantaram-se imediatamente e foram pra rua.+

Eu fiquei atônito por alguns segundos. O que significaria ‘machucou muito’? Quando, após alguns segundos, tive forças para me levantar, cheguei à varanda e vi a rua cheia de gente. Vizinhos e parentes. Desci à rua e perguntei à primeira pessoa que surgiu na minha frente: +

‘Tia, o que aconteceu?’

A resposta foi a que eu temia e teimava em não crer.

‘O que a gente ficou sabendo foi que ele a matou’. +

Claudinho é nome fictício. Não vou dar fama ao nome real. Era o 1º namorado da minha irmã. Jovem de família simples como a nossa. Uma pessoa do bem. Não se envolvia com drogas, o que, no nosso contexto social, era um achado preciosíssimo. Eu gostava dele. Era meu amigo. +

Eu não conseguia entender o que aconteceu. Aparentemente eles haviam brigado e terminado o relacionamento. Já tinha acontecido algumas vezes. Eram, ambos, um pouco instáveis como quaisquer adolescentes (ela 16, ele 20), mas nada aparentemente patológico.+

Após o término, ele foi à casa do meu pai pedindo para conversar. Priscila saiu à rua para falar com ele. Talvez reatassem. Não houve conversa. Ele a matou com seis facadas ali mesmo, no portão da casa do meu pai.+

Por que aquilo aconteceu? Ele era um rapaz bom, não aparentava nenhum sinal de violência, nenhum desvio psicológico, nenhuma doença mental. Hoje eu entendo com maior clareza o que ocorreu. Havia, sim, uma doença. Ainda há. Não era Claudinho o doente. Era a sociedade.+

O machismo é doença que mata. A ideia de que o homem é superior à mulher, de que a mulher é mera propriedade do macho, está enraizada na nossa cultura. Claudinho aprendeu assim. O processo civilizatório não havia chegado à mente dele. Ele agiu como homem das cavernas.+

O processo civilizatório ainda não chegou à nossa sociedade. Esse patriarcado é extremamente perigoso. O machismo mata. Quando misturado à cultura da violência, da justiça privada, mata ainda mais. Naquele episódio foram duas famílias destruídas, a minha e a dele.+

Nos dias seguintes ao fato ele começou a telefonar para a nossa casa. Meio transtornado. Queria saber o estado de saúde da Priscilla. Dizia que não se lembrava do que aconteceu. Ela morreu na hora. +

Era plausível que ele não tivesse percebido o resultado das facadas, pois testemunhas o viram correndo imediatamente, abandonando a faca no local. Eu só queria que aquele pesadelo acabasse. Achava inadmissível ter de tutelar a dor daquele que provocara a dor.+

Na periferia, o Estado não chega. Não há vácuo de poder. O poder não estatal se estabelece. Inclusive o poder judiciário paralelo. De modo que não faltaram propostas para que a justiça da periferia fosse feita. Nenhuma delas onerosa. Queriam fazer o serviço de graça. +

Claudinho feriu o senso de justiça inclusive dos fora da lei. Eu neguei todas. Eu sempre quisera vencer essa barreira. Eu sempre acreditei que se o estado não chegasse até mim eu poderia buscá-lo na marra, através da educação. +

Eu queria viver o mundo que a gente via na TV, não o mundo paralelo dos marginalizados. Eu precisava resolver através do estado constituído. Mas não foi fácil. Foram muitas idas à Delegacia, ao Fórum, ao Ministério Público.+

Muitos dias após o crime ainda não havia um mandado de prisão, mesmo com as testemunhas, mesmo com os telefonemas em que o próprio Claudinho confessava ter feito aquilo, embora dissesse não se lembrar exatamente como seu deu ‘aquilo’. Não havia imprensa pressionando.+

Houve, no dia, uma notinha no jornal local. Mas ninguém se importava. Era uma menina pobre. O caso era parecido com o da Daniela Perez. Mas não houve comoção nacional. Nem local. Ninguém se importava. Decidi que eu mesmo resolveria aquilo. Mas não abandonei a justiça estatal.+

Obriguei o estado a agir. Passei a enviar notas diárias ao jornal local. Coloquei identificador de chamadas no telefone. Pressionava diariamente as autoridades. No 15º dia, consegui identificar a chamada. Partia de Manhuaçu/MG.+

Google Maps, agenda telefônica que ele esquecera lá em casa, lista telefônica. Descobri o endereço da casa de um tio dele. As ligações partiam do telefone desse tio. Fiz tudo sozinho. Eu tinha mapa, foto de satélite e foto da casa. Mas eu não tinha um mandado de prisão.+

Pressionei muito as autoridades naquele dia. Ao fim do dia consegui o mandado de prisão. Coloquei minha mãe e meus avós no carro — eu tinha medo de deixá-los sozinhos — e partimos para Minas Gerais. Eu tinha três meses de habilitado, nunca havia dirigido em rodovia. +

Nunca havia dirigido na chuva. Nunca havia dirigido à noite. Era noite e chovia. Andei 300 quilômetros a 60 km/h. Cinco horas depois, chegamos na cidade onde meu primo residia (Leopoldina/MG). Ele tomou a direção e enfim pudemos ir mais rápido.+

Ao chegar em Manhuaçu, fomos direto à delegacia. Os policiais ficaram chocados com a história. E chocados com o fato de o mandado de prisão e o endereço do esconderijo terem chegado a eles pelas mãos do irmão da vítima, e não pelas vias estatais. +

Disseram que não havia viatura na cidade, mas que dariam um jeito. Não pude esperar. Meu primo foi dirigindo e eu fui escondido no banco de trás. Claudinho não conhecia o meu primo e meu carro era bastante comum. Se Claudinho nos visse, talvez não percebesse que era meu carro.+

Ele estava na varanda, exatamente no endereço que eu obtive em minhas investigações. Voltamos correndo à delegacia. ‘Ele está lá agora, tem que ser agora!’ Mas ainda não havia viatura. Os policiais foram no meu carro, com meu primo dirigindo. +

Eu fiquei na delegacia. Essa foto foi tirada por meu primo, no exato momento que entravam com ele na delegacia. Quando minha mãe o viu, quis pular em cima dele, gritando que iria matá-lo ali mesmo. Tide de segurá-la muito fortemente. Fomos embora.+

No caminho de volta, minha mãe pediu pra parar nessa cachoeira, às margens da BR-116, em São Francisco do Glória/MG. Ficou longos minutos assim. Tive medo de que ela pulasse, mas não me senti no direito de impedí-la. Depois ela se virou e pediu pra tirar essa outra foto comigo.+

Desde então tornou-se algo raríssimo conseguir um clique com minha mãe sorrindo, mesmo nos momentos de suposta alegria. +

Meses depois ele foi julgado e condenado a 19 anos de prisão. Eu poderia, enfim, retomar o meu plano de vencer a pobreza. A faculdade não foi fácil. Eu sofria muito. Não pude chorar a morte da minha irmã. Eu tinha que fazer justiça. Não havia espaço para o luto.+

O luto veio depois da luta. Na periferia é assim. Não há sequer o direito de sentir dor. Vivemos anestesiados pelas amarras que a sociedade nos impõe. As pessoas acabam se conformando. E se escondem na bebida. Nas drogas. Viram presas fáceis para a cultura machista. Que mata.+

Mas eu nunca me conformei. Após fazer justiça, fiz Direito. Mas decidido a não me matar de estudar. Finalmente eu precisava viver. Não queria ser juiz ou defensor ou promotor. Um cargo de analista me bastava, pois não tomaria muito tempo estudando. Então eu vivi. Vivi muito.+

(…)

Mas em maio de 2019 decidi que serei juiz de direito. Não por sucesso profissional. Eu sempre busquei vencer a pobreza, mas sempre entendi que não é o dinheiro que traz a felicidade. Eu estava satisfeito onde cheguei profissionalmente. Não precisava de mais.+

É obvio que a magistratura será um grande sucesso profissional, é o ápice da carreira jurídica. Mas o que realmente me move não é a ambição pessoal. É a responsabilidade social. É a necessidade de fazer mais.+

Ao ver tantas mentes doentias em posições de poder, decidi colocar-me também a serviço da sociedade em uma posição de poder. Um poder pequeno, é verdade. Juiz não é herói. Não pode querer ser herói. Juiz não é justiceiro. +

Eu tive a oportunidade de ser justiceiro quando minha irmã foi morta. Não fui. Quero aplicar o direito corretamente. Pois creio que é no estado de direito, no exercício dos poderes constituídos, que podemos construir uma sociedade melhor, menos violenta, com mais oportunidades.+

Entrei de cabeça na missão. Mesmo após alguns anos sem estudar para concursos, consegui algum sucesso logo no primeiro concurso de juiz que me inscrevi. Estou aprovado para a prova oral, aguardando-a. Nem o coach que contratei no início acreditava ser possível.+

Tenho estudado muito. Mas muito mesmo. Descansei muito naqueles dez anos após a faculdade. Não sinto necessidade de descanso agora. A vida já me feriu tanto que tamanha dedicação não me dói. Na verdade, tem me feito bem. O estudo é minha distração diante de tanta notícia ruim.+

Eduardo Galeano conta em Las palabras andantes? que ouviu Fernando Birri dizer: ‘A utopia está lá no horizonte. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.’+

Minha utopia é justamente esse mundo menos violento, menos machista, menos paternalista, mais justo, com mais oportunidades para todos. Esse mundo passa pela educação. Essa é a utopia que me move. É o que me faz ir à mesa de estudos ao acordar e de lá me levantar para ir dormir.+

Mais que meu sucesso profissional, é com o exemplo que me preocupo. Quero dizer aos jovens, especialmente os da periferia, que não desistam! Lutem! A pobreza é um grande obstáculo, não há dúvida. Mas é possível vencê-lo. Eu venci a pobreza. E vou vencer mais.+

A única arma possível é a educação. Ninguém vai me dizer que eu não posso. Ninguém vai me dizer que é impossível. Nasci em um mundo injusto, que foi muito injusto comigo, e mais injusto ainda com a minha irmã. +

Decidi construir a justiça com minhas próprias mãos. Eu serei juiz de direito. O filho do pobre pode ser o que ele quiser”.