Não é que voltou o veto a “criado-mudo”? Por Luis Felipe Miguel

Atualizado em 25 de novembro de 2021 às 17:36
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Não é que voltou o veto a “criado-mudo”? Por Luis Felipe Miguel. Foto: Reprodução/BBC

O cientista político Luis Felipe Miguel, da UnB, escreveu sobre a questão do termo “criado-mudo”. E também sobre seu veto. O texto saiu no Facebook. Entenda a análise dele.

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Veto ao ‘criado-mudo’?

Não é que voltou o veto a “criado-mudo”, com base numa etimologia sem pé nem cabeça, inventada numa campanha publicitária, remetendo a uma história absurda?

A lista de palavras vetadas, que li em reportagem da BBC Brasil atribuindo-as a uma cartilha da defensoria pública baiana, começava com “criado-mudo” e terminava com “escravo”.

A ideia é que a palavra “escravo” essencializa a condição do cativo, justificativa para substituí-la por “escravizado”. Mas aqui se revela uma compreensão bizarra do funcionamento da linguagem.

É uma espécie de cartesianismo linguístico, similar ao daqueles que querem abolir “risco de vida” e “gol de bola parada”, ainda mais estranho porque partindo de gente que, em geral, prega epistemologias “decoloniais” não eurocêntricas.

E, caso fosse assim, o operário teria que ser “operarizado”, pois ser explorado não define sua essência como ser humano. O bolsonarista viraria “bolsonarizado”, já que sua adesão à extrema-direita não está marcada na genética, mas é fruto de processos sociais. E assim por diante.

Outras palavras e expressões vetadas, citadas na reportagem, remetem a origens hoje já completamente esquecidas – mesmo aceitando que as narrativas explicativas são verdadeiras, o que está longe de ser pacífico. Ou alguém que fala “de meia tigela”, “feito nas coxas” ou “a dar com pau” está remetendo à escravidão?

É aquela crença numa espécie de homeopatia etimológica – à qual, aliás, converteu-se até Reinaldo Azevedo, no esforço desesperado para apagar seu passado recente de ultradireitista histriônico. Tal como nas beberagens do dr. Samuel Hahnemann, os sentidos originais das palavras continuam operantes e potentes, mesmo depois de séculos sendo apagados pelo uso.

Se fosse assim, seria impossível falar. A língua é atravessada por preconceitos, crenças falsas, hierarquias sociais. Mas as palavras se emancipam de suas origens.

Aliás, teríamos que recusar até “vacina”, já que a palavra, paradoxalmente, se associa ao gado – exatamente aqueles que resistem a ela!

Eu me pergunto qual é o ganho de recuperar sentidos que o uso apagou.

Para além de seu uso especializado, a etimologia era uma diversão de salão. Eu, Luís, podia espantar os convivas chamando um Clóvis de “meu xará”. Agora, tornou-se uma fábrica de tretas.

Que bom que não existe nada mais importante no mundo, que exija nossa atenção!

Enquanto isso, Patricia Hill Collins continua usando o verbo “denigrate” sem nenhum pudor. Imagino que não seja o caso de cancelá-la – ela, que se tornou um ícone do feminismo negro, reverenciada mesmo por muita gente que nunca a leu.

Em Black feminist thought, seu livro mais conhecido, a palavra aparece já no terceiro parágrafo. E permanece lá, ao longo das edições revisadas.

Tive a curiosidade de buscar a tradução brasileira.

“Societally denigrated categories”, que está já no prefácio, virou “categorias socialmente preteridas”, o que, francamente, não tem o mesmo peso. Pelo livro afora, todas as vezes, sem exceção, a palavra foi modificada na tradução.

É uma pena, porque seria interessante exibir uma estratégia diferente – na verdade, uma hierarquia de prioridades diferentes. Em vez de recuperar o substrato racista da palavra, tornando-o novamente ativo diante do público, a fim de estimular sua má consciência, o que Collins faz é aceitar o processo de neutralização do sentido originário. Assim, foca suas energias em outras coisas. Mais difíceis de serem enfrentadas, mais espinhosas, mas também provavelmente mais importantes.

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