
Por Otavio Luiz Rodrigues Jr
A influência de autores nazistas e suas ideias sobre o Direito Civil brasileiro tem sido objeto de minhas pesquisas há mais de uma década, tanto que consolidadas em minha tese de livre-docência de 2017 na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. No Direito alemão, a revisão do papel dos juristas do regime nacional-socialista nos anos 1933-1945 e, o mais grave, sua supervivência nas universidades e nos tribunais após a Segunda Guerra Mundial somente conseguiram romper a lei do silêncio nos finais da década de 1960, graças aos esforços e à coragem de Michael Stolleis e de Bernd Rüthers , além de Joachim Rückert, embora este último com menor ênfase.
Foi com grande surpresa (e satisfação) que saiu a notícia nos jornais alemães de que a Editora Beck, sediada em Munique, uma das mais tradicionais na área do Direito, decidiu renomear o célebre Código Civil comentado “Palandt”, em 80ª edição ininterrupta e um dos campeões de citação na doutrina e na jurisprudência.
O nome do famoso Código Civil comentado é uma homenagem a seu primeiro editor e organizador, Otto Palandt (1877-1951). Tendo ingressado em 1º de maio de 1933 no Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, mais conhecido pelo acrônimo Partido Nazista, ele atuou no Ministério da Justiça do Terceiro Reich como responsável pela formação e doutrinação dos magistrados na ideologia do regime, em 1938, Palandt assumiu a edição de um comentário ao Código Civil alemão, que já se encontrava em estágio bem avançado, mas cujo editor original havia falecido, logo após o final da guerra, em 1945, Palandt reescreveu textos do livro que defendiam o nazismo e sua visão jurídica. Ele se submeteu a um processo de desnazificação e foi nomeado professor na Universidade de Hamburgo em 1949, lecionando Direito Civil e Direito Comercial.
O passado nazista de Palandt não o impediu de conduzir até seu falecimento, em 1951, uma das obras mais emblemáticas do Direito Civil alemão. A tolerância para com ele não foi um episódio isolado. Os nomes de nazistas ou filonazistas como Carl Schmitt, Ernst Rudolf Huber, Karl Larenz, Theodor Maunz, Franz Wieacker e Alfred Hueck integram o panteão de juristas que serviram de modo insensível à ditadura hitlerista, mas que nunca foram chamados a responder por esse passado de cumplicidade com um regime que resume em si mesmo a ideia de mal absoluto.
A supressão do nome de Palandt não foi a única decisão relevante da Editora Beck a ser anunciada nesta semana. Igualmente, a coletânea legislativa “Schönfelder” perderá o nome de seu criador, Heinrich Ernst Schönfelder (1902-1944). Filiado ao Partido Nazista em 1º de abril de 1933, Schönfelder editou a “Deutsche Reichsgesetze”, a coletânea de capa vermelha, com folhas soltas, que se tornou um símbolo de repositório legislativo na Alemanha durante boa parte do século 20 e início do século 21. O nome de Schönfelder tornou-se o símbolo de coletânea de leis. Na edição de 1935, a quarta; ela continha o programa do Partido Nazista e os principais documentos constitucionais do regime hitlerista. Nesta semana, a Beck renomeou a coletânea, que agora será conhecida como (Mathias) “Habersack”.
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Outra obra clássica do Direito alemão, os comentários à Lei Fundamental Maunz/Dürig, em homenagem a seus primeiros editores, Theodor Maunz e Gunther Dürig, passará a ser conhecida como “Dürig/Herzog/Scholz”, Dürig foi um influente constitucionalista alemão do pós-guerra, pai da doutrina da eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas e pessoa de límpidas credenciais não nazistas. Já Theodor Maunz (1901-1993), professor da Universidade de Freiburg, foi um dos mais fervorosos juristas do regime nazista. Depois da guerra; quando passou a lecionar na Universidade de Munique; ele seguiu com grande prestígio no Direito e na política; com participação decisiva na elaboração da Lei Fundamental de 1949. A despeito de seu passado, Maunz nunca repudiou sua simpatia pelo regime hitlerista.
A mudança de nomes em duas obras-chave para o Direito Civil e o Direito Constitucional na Alemanha não se deu sem anos de críticas de acadêmicos respeitados como Stolleis e Rüthers, nos últimos anos, os estudantes universitários em Munique e Hamburgo passaram a recortar as capas dessas publicações para suprimir os nomes de Maunz e Palandt. Esses protestos cresceram e ecoaram para o universo político e a opinião pública em geral. Daí a iniciativa dos editores da Beck não chegar a ser algo desconectado de um processo de crescente indignação com a supervivência desse passado nefasto no Direito contemporâneo.
As digitais de homens como Maunz, Palandt e outros juristas nazistas célebres estão por boa parte do Direito brasileiro, que recepcionou muitas de suas ideias, ainda que sem a percepção clara dos autores nacionais. Esse é um processo que; a despeito de tantas décadas depois do fim do nazismo, ainda não se mostra suficientemente assimilado. Stolleis considerava que apagar os nomes desses nazistas não era suficiente ou talvez não fosse a melhor solução. O essencial seria conhecer criticamente suas ideias e combatê-las.
O problema, contudo, é que a nominação dessas obras era (até então) uma forma de homenagem póstuma a homens comprometidos em suas consciências, suas palavras e seus atos com um regime que, mesmo passados séculos, jamais poderá ser perdoado ou esquecido. Em relação ao nazismo, não há como se admitir meios-termos, contemporizações ou explicações justificadoras. O nazismo é um dos pontos nos quais toda a malignidade humana conheceu sua essência e não existe margem para jogos de claro-escuro. Ele é a absoluta ausência de luz.
Esse debate precisa chegar ao Brasil. É necessário identificar a influência dessas ideias em nosso pensamento jurídico. É fundamental desenvolver um estudo sobre a genealogia dessa doutrina e inspirar as novas gerações de juristas a repudiar tais heranças teóricas, não é possível separar o projeto de poder que gerou a Academia Alemã de Juristas, a famigerada Escola de Kiel e o projeto de Código Civil do Povo Alemão e as ideias que foram reescritas ou edulcoradas para se conservarem em livros que, até hoje, são estudados com reverência por leitores ignorantes das manchas de sangue nas canetas de quem os escreveu.
Com muita razão, Rüthers demonstra que esse não é um debate exclusivamente alemão. Ele ainda está aberto na França, na Áustria, na Noruega, na Holanda e na Itália, em Portugal e na Espanha, além, é claro, no Brasil, tanto a recepção das ideias nazistas está presente nas obras locais quanto o estudo dos juristas colaboracionistas nos países ocupados pelos alemães ou vinculados às ditaduras, no caso ibero-americano, demandam sua descoberta pela academia e pelo Poder Judiciário nacionais.
O estudo desses autores e de suas ideias não pode ser confundido com a censurável prática do cancelamento. Ao contrário; é importante ler de modo crítico esses textos até para que eles não sigam com sua bem-sucedida trajetória de influenciar o pensamento acadêmico e judicial. Mas, especialmente quanto ao nazismo, não é possível flexibilizar o papel nocivo desses autores.
O exemplo da Editora Beck é emblemático. O acerto de contas precisa chegar até nós.