Elza Soares: a mulher do milênio e do fim do mundo

Atualizado em 20 de janeiro de 2022 às 18:39
Foto de Elza Soares com cabelos crespos loiros, olhar sério e roupa preta. Ela está maquiada.
Texto traça a vida da cantora que deixa grande legado ao país. Foto: Divulgação

Elza Soares, uma das figuras mais extravagantes, talentosas e de estilo único na música popular brasileira, em 1969, aceitou o desafio de interpretar um samba-enredo num desfile de Carnaval,  quando mulheres não faziam isso.

No gogó, sem perder o ritmo, Elza Soares conduziu os integrantes do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro à vitória, dando à escola o seu quarto título no carnaval carioca. Era o final dos anos 1960, tempo de Ditadura Militar, e ela cantou e encantou passistas, público e jurados interpretando Bahia de Todos os Deusesde Bala e Manoel Rosa, tornando-se  a primeira mulher e negra a interpretar um samba-enredo em um desfile de escolas de samba.

O Salgueiro foi a oitava escola a desfilar na avenida Rio Branco.  Elza lembra: “Em 1969, não tinha horário pros desfiles. Desfilamos ao meio-dia, debaixo de sol forte. Eu estava sozinha e não sabia que cantaria tantas vezes, mas dei conta“.

Apesar de campeã na estreia,  sua participação não ficou registrada em disco naquela época. Isso porque os sambas eram gravados  só depois do desfile e a interpretação coube a Noel Rosa. .

Elza Soares  quebrou a tradição em uma das mais tradicionais escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro. Mas seu feito não ficou gravado em disco – naquela época, os sambas eram gravados depois do desfile e a interpretação coube a Noel Rosa. “Bahia, os meus olhos estão brilhando,Meu coração palpitando,De tanta felicidade.

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Texto aborda trajetória de Elza Soares, cantora faleceu aos 91 anos e deixa grande legado

A líder

Quem cantava samba-enredo na avenida era chamado “puxador de samba“… Agora,  os antigos “puxadores de sa mba” querem ser reconhecidos como intérpretes.

Tudo bem. Mas deve-se registrar uma das principais obrigações de quem assume esta responsabilidade  que o mundo do samba,  ainda, acha ser dos homens.. Mais que um cantor,  o “puxador de samba”, o intérprete,  tem a obrigação de manter elevado o moral da escola. É dele – ou dela – que partem os gritos de guerra na concentração, antes do desfile. E ele –  ou ela –  quem tem a responsabilidade de contagiar todos os integrantes, de aquecer a escola, lembrar as tradições. Ele  – ou ela – exerce papel de liderança., é quem sai na frente, quem  guia a escola.

Elza, entretanto, estava só começando. Seu pioneirismo a conectou à cultura das escolas de samba. A sambista-jazzista se infiltrou.

Salve a Mocidade 

Mocidade Independente de Padre Miguel – este o nome da escola onde mais Elza soltou sua voz rouca e potente. Padre Miguel é o lugar onde ela nasceu e viveu, primeiro na Vila Vintém, depois na favela Água Santa, como diz, “uma favelinha dos operários”, sem água nem banheiro. Na Mocidade, ela gravou um compacto com o samba Rio Zé Pereira, que ajudou a defender na avenida, numa fase em que a escola começava a se modernizar.

Depois, por quatro anos, com Ney Vianna, Elza entoou os sambas-enredoFesta do Divino, O Mundo Fantástico do Uirapurú e Mãe Menininha do Gantois.

Operação casada

Em 1977, Elza afastou-se da Mocidade e, dois anos depois, se apresentou no carnaval de Niterói, cantando Afoxé, pela Acadêmicos do Cubango.

Oito anos depois, em 1985, reaparece na avenida, convidada pela União da Ilha do Governador, e defende o sambaUm Enredo, Um Herói, Uma Canção,  grava o disco oficial das escolas de samba, mas não aparece no dia do desfile.

Em 2000, finalmente, ela  defende um samba-enredo pela Acadêmicos do Cubango, canta Por Uma Independência de Fato, e assume um carro de som na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro – estreia no sambódromo.

Além do carnaval

A carreira de Elza Soares começa em um show de calouros. Antes de  cantar, no entanto, ela tinha que se apresentar. Um desafio e tanto, que acabou provocando o seguinte diálogo entre ela e Ary Barroso, que comandava o programa de auditório ao vivo na Rádio Tupi:

Vendo seu jeito humilde, Ary Barroso perguntou:

De que planeta você veio?

Elza respondeu:

“Vim do mesmo planeta que o senhor.”

Ary: “E posso saber de que planeta eu sou?”

Elza: “Do Planeta Fome”.

Depois desta declaração, ela pegou o microfone e mostrou todo seu potencial para quem, antes, ria dela.

Sua história é uma riqueza, mas longe de ser um conto de fadas. Reconhecida como Rainha do Samba, Elza experimentou emoções fortes ao longo de seus 90 anos de vida.  Da miséria à riqueza, do assédio ao descaso da mídia, da paixão ao abandono. Ganhou fama, sucesso e dinheiro, elogios, títulos. Vida e morte. 

Cantora do Milênio

Ela gravou discos memoráveis na Odeon, entre 1959 e 1974. Seu primeiro sucesso foi uma recriação do samba Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues, na qual introduziu scat similar ao do jazzista Louis Armstrong – aquela  técnica de canto  que consiste em cantar vocalizando, inclusive com palavras sem sentido e sílabas.

Inúmeras de suas músicas foram para o topo das listas de sucesso no Brasil ao longo de sua carreira. Entre eles, Cadeira Vazia (1961), Só Danço Samba (1963), Mulata Assanhada (1965) e Aquarela Brasileira (1974).

No auge da carreira, nos anos 60, gravou e fez muito sucesso com discos clássicos como O máximo em Samba (1967), Elza Soares & Wilson das Neves (1968), Elza, Miltinho e Samba, uma série de três álbuns com Miltinho, e, Sangue, Suor e Raça (1972), que dividiu com o então estreante Roberto Ribeiro.

Dona de uma voz rouca e rítmica, aliada aos seus scats, deu forma inteiramente nova aos dois estilos de samba que se conhecia quando ela surgiu: o samba de raiz e a bossa nova, que chegou a ser chamada de  Bossa Negra, título de seu segundo disco.

No fim da década de 1950, fez uma turnê de um ano pela Argentina, junto com Mercedes Batista. No Chile, representando o Brasil na Copa do Mundo da Fifa de 1962, seu estilo exagerado fascinou o público.

Alguns de seus álbuns foram relançados em versões remasterizadas de CD: de 1961 – A Bossa Negra (contendo seu maior sucesso no ano, Boato) – e de 1972, com uma grandiosa banda, Elza Pede Passagem, um clássico e representante do som samba-soul do início dos anos 1970.

Descrita como mistura explosiva de Tina Turner e Celia Cruz, Elza Soares conquistou o título de “cantora do milênio” pela BBC de Londres, durante o projeto The Millennium Concerts, da rádio inglesa, criado para comemorar a chegada do ano 2000.

Ícone

Elza da Conceição Soares nasceu carioca em  23 de junho de 1930. Filha do operário e violonista Gomes Soares e da lavadeira Rosária Maria Gomes. Ainda pequena mudou-se para Água Santa, onde se criou, soltando pipa, rodando pião, levando latas d’água na cabeça, brincando e brigando com os meninos na rua.

Aos doze anos, por ordem de seu pai, casou com Lourdes Antônio Soares, conhecido como Alaúrdes. Teve seu primeiro filho, João Carlos, aos 13. Ficou viúva aos 21, com cinco filhos para criar, quatro meninos e uma menina. Se tornou sensação internacional aos 30.

Aos 32 anos conheceu o craque de futebol Mané Garrincha, que já era casado. E sofreu preconceito por esse relacionamento. Foi ameaçada de morte, teve a casa alvejada por ovos e tomates.

A sociedade a xingava de “vadia”, os amigos do marido de “bruxa”, por ela proibi-lo de beber – Garrincha era alcoolista. Eles ficaram juntos por 16 anos, de 1968 a 1982, e tiveram um filho, Manoel Francisco dos Santos Filho, apelidado de Garrinchinha.

Elza Soares pariu seis filhos e viu três morrerem, inclusive Garrinchinha, aos 9 anos, em acidente de carro, em 1986. Do mesmo modo, em 1969, Elza viu partir sua mãe. Garrincha havia bebido e estava ao volante.

Elza Soares, mais que um ícone como artista, é um ícone como pessoa, exemplo de superação.

Diva

Nos anos 1980, ficou sem emprego. Ensaiou uma volta quando Caetano Veloso a convidou para gravar Língua, em seu LP Velô, em 1984. Depois, em 1985, o roqueiro Lobão e o mesmo Caetano patrocinaram um disco coroando sua volta.

carreira de Elza foi retomada ao ser convidada para participar do CD Casa de Samba, em 1996, quando voltou a aparecer mais constantemente na mídia. Gravou novo álbum solo após nove anos, Trajetória , em 1997, e conquistou o Prêmio Sharp de Melhor Cantora de Samba.

Em 2004, Elza lançou o álbum Vivo Feliz, um mix de samba e bossa com música eletrônica. Em 2007, o álbum Beba-me, com músicas que marcaram sua carreira.  Aos 50 anos de carreira, em 2008, teve sua vida e obra pesquisada pela cineasta e jornalista Elizabete Martins Campos para o longa-metragemMy Name is Now, Elza Soares, lançado em 2014.

Dez anos mais tarde, outro marco: a estreia do  show A Voz e a Máquina, baseado em música eletrônica, acompanhada no palco apenas pelos DJs Ricardo Muralha, Bruno Queiroz e Guilherme Marques. Nesse mesmo ano, fez uma série de espetáculos  Elza Canta e Chora Lupicínio Rodrigues, em comemoração ao centenário do cantor e compositor gaúcho.

Aos 78 anos, ela surpreendeu fãs e não fãs, já acostumados a ouvir sua voz entre os batuques do samba de raiz e da bossa tradicional, ao lançar o álbum de samba eletrônico A Mulher do Fim do Mundocom músicas inéditas e contemporâneas.

A Mulher do Fim do Mundo foi aclamado pela crítica como um dos melhores discos dos últimos anos da MPB e rendeu a Elza o prêmio de Melhor Álbum na categoria Pop/rock/reggae/hip-hop/funk, bem como a indicação de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira e o prêmio de Melhor Música em Língua Portuguesa no 17º Latin Grammy Awards.

Elza interpretou o Hino Nacional Brasileiro á  capella na Cerimônia de Abertura dos Jogos Panemericanos Rio 2007 e, em 2016, se apresentou na Cerimônia de Abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016, com O Canto de Ossanha, clássico de Baden Powell e Vinicius de Moraes.

A música de Elza Soares inspira três gerações. Ela inspira. É um clássico, uma deusa,  consciente do racismo nosso de cada dia, não se deixar abater. É porta-voz de bandeiras políticas musicais, diva de uma nova cena contemporânea e trabalhou muito para conquistar este lugar.

Por Tania Regina Pinto.

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