Exclusivo: Conheça o #InternetLivre, grupo de WhatsApp que gerou o gabinete do ódio

Atualizado em 29 de setembro de 2021 às 1:38
Tuítes de integrantes do #InternetLivre na época do grupo. Foto: Reprodução

O DCM cobre o gabinete do ódio, a militância extremista de Bolsonaro e a extrema direita antes mesmo da eleição do atual presidente. Ao longo de dois meses, a reportagem tem mantido contato com figuras da direita que estiveram ligadas ao antipetismo militante, ao bolsonarismo e grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL).

Dessas conversas, publicamos um especial sobre o gabinete do ódio. A série traz duas novas reportagens exclusivas, duas entrevistas com pesquisadores da militância bolsonarista e duas reportagens de 2020, atualizadas, baseadas em um documento recebido pelo DCM com 124 páginas.

Um dos textos é sobre a facada que Jair Bolsonaro sofreu em 2018.

Com a crise prolongada pelo discurso extremista de Jair Bolsonaro (sem partido) contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e os ministros Alexandre de Moraes e Luis Roberto Barroso, o inquérito dos atos antidemocráticos resultou em prisões de bolsonaristas.

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#InternetLivre pré-gabinete do ódio

Uma das fontes consultadas é o escritor e blogueiro Carlos Afonso, antigamente conhecido pelo apelido “Luciano Ayan”. Afonso enviou, com exclusividade ao DCM em abril, uma amostra do livro que está escrevendo sobre o funcionamento das fake news. O registro deve se chamar “Cyber-Distopia”.

Em outubro de 2019, ainda no primeiro ano de governo Bolsonaro, ele deu uma entrevista se mostrando arrependido do apoio que deu para a extrema direita. “Se voltasse no tempo, teria votado em Ciro Gomes ou Fernando Haddad. Por mais que isso possa incomodar algumas pessoas de meu círculo de amizades”.

Afonso foi preso em julho de 2020 por uma suspeita de envolvimento no desvio de mais de R$ 400 milhões em impostos federais como parceiro do MBL. O movimento nega relação com o blogueiro e o fundador Renan Santos afirmou que a denúncia dada ao Ministério Público partiu de perfis bolsonaristas. Para Renan, eles teriam anuência do filho do presidente da República, Carlos Bolsonaro.

A conversa com essas fontes levou a um nome que muitas figuras da direita fizeram parte: um grupo chamado #InternetLivre, que ganhou força na eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

O grupo foi uma das organizações que fortaleceu, ao longo da ascensão do bolsonarismo, o que hoje chamamos de “gabinete do ódio”.

O que era o #InternetLivre?

#InternetLivre era um grupo de WhatsApp criado no mês de março de 2018, quando Carlos Afonso, na época chamado de Luciano Ayan, espalhou uma fake news da desembargadora Marília de Castro Neves. O caso foi publicado pela colunista Mônica Bergamo na Folha de S.Paulo e compartilhado por Ayan. A desembargadora afirmava que a ex-vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio, tinha ligação com Marcinho VP.

Uma militante na época olavista chamada Valéria Scher reuniu uma centena de influenciadores de direita em torno do caso de Ayan. O grupo queria rastrear agências de checagem de notícias, como Lupa, Aos Fatos e E-Farsas, e tentar associá-los de alguma forma aos grupos de esquerda de partidos políticos.

#InternetLivre: Ataque contra jornalistas que fazem checagem de fatos. Foto: Reprodução/Twitter

“Era como uma Torre de Babel. Muitas postagens diárias e quase todas pró-bolsonaro. A dinâmica não era verticalizada. Alguém postava uma notícia, print ou ataque a algum jornalista e logo depois outros compartilhavam em suas redes a mesma notícia ou pontos de vista semelhantes na época das eleições de 2018”, diz a pesquisadora Michele Prado, autora do livro “Tempestade Ideológica”, que fez parte do grupo.

A escritora e pesquisadora Michele Prado. Foto: Reprodução/YouTube

O grupo de WhatsApp era a direita que atuava para “se proteger da mídia independente”, na palavra de alguns ex-integrantes. Os mais atuantes, no entanto, eram bolsonaristas que atacaram jornalistas nas redes sociais. Os direitistas mais liberais, nas palavras de diferentes fontes, estavam presentes lá e tinham uma atuação mais apagada.

“O discurso era anti-mídia”.

Quem estava no grupo?

Luciano Ayan teve proximidade com o guru Olavo de Carvalho e concordava com suas ideias pré-bolsonaristas. Mas, a partir de 2014, passou a brigar com o guru e rompeu em outubro de 2015, nas discussões em torno do impeachment sem crime de responsabilidade contra Dilma Rousseff. Ayan defendia o golpe e dizia que Olavo se “ressentia” por não ter atenção devida ao “falar sobre o Foro de São Paulo” e suas teorias da conspiração de extrema direita.

Por essa razão, nenhum dos filhos de Jair Bolsonaro estava no grupo. A partir de 2015, Flávio e Eduardo Bolsonaro fizeram visitas ao Olavo em sua casa nos Estados Unidos. Tinham se tornado seus alunos e aproximaram o pai do guru. Esse rompimento de Olavo de Carvalho com Ayan afastou o 01, 02 e 03 dessa articulação.

Mas outros bolsonaristas estavam no grupo. Alguns deles foram eleitos, outros chegaram a ganhar cargo no governo e tiveram aqueles que se tornaram influenciadores digitais ativos do governo Bolsonaro.

Os nomes

Bia Kicis, Carla Zambelli, Felipe Pedri, Rodrigo Constantino, Leandro Ruschel, Flávio Azambuja (conhecido como Flávio Morgenstern), Flávio Gordon e Bernardo Küster estavam lá. Desse grupo, Zambelli e Kicis se tornaram deputadas federais e nomes importantes do bolsonarismo na Câmara. Felipe Cruz Pedri tornou-se secretário de Comunicação Institucional do governo federal.

Michele Prado adicionou outros nomes: “Ana Paula Henkel, Caio Copolla, Paulo Eduardo Martins eram alguns nomes. Eram mais de 100 pessoas e a maioria radicalizou”. 

Nessa mescla de direitistas e a extrema direita, um advogado chamado Emerson Grigollete convidou Ayan para escrever um projeto de lei para impedir que agências de checagem de notícias marcassem conteúdos jornalísticos. Grigollete radicalizou-se e passou a seguir os ideais de Olavo de Carvalho.

O MBL

Coordenadores do Movimento Brasil Livre (MBL) eram ativos no grupo. Principalmente o seu fundador, Renan Santos, que participava da coordenação. Haviam fake news que circulavam entre as mensagens, sobretudo teorias da conspiração associando o bilionário George Soros com a esquerda. Isso era compartilhado mesmo entre militantes diferentes.

“Sim. Renan Santos estava e, na época, o Eric Balbinus também. Hoje o Eric já não faz parte do MBL há um bom tempo”, explica Michele Prado. A pesquisadora aponta que o grupo propagava um discurso padronizado sem nenhum contraponto nas redes sociais.

Com essa divisão, que foi se expandindo, entre “radicais e moderados”, começaram os linchamentos públicos de quem não estava alinhado com o bolsonarismo, dando a tônica dos ataques via hashtags no Twitter. Candidatos do Partido Novo se tornaram alvo e não foram defendidos sequer por colegas da legenda – o que começou a gerar revoltas dentro do #InternetLivre.

“Uma das coisas que me lembro bem era a justificativa de assédio online contra os críticos de Bolsonaro. Influenciadores desse grupo não apenas não se opunham a essa prática como até justificavam. Não defendiam nem mesmo amigos que estivessem sofrendo linchamentos virtuais dos bolsonaristas”, completa Michele. 

A facada em Bolsonaro e o rompimento no grupo

Bolsonaro é socorrido após ataque

O dia 6 de setembro de 2018 foi um dia que mudou o grupo de WhatsApp #InternetLivre. O grupo rachou.

O então candidato Jair Bolsonaro recebeu uma facada de Adélio Bispo em Juiz de Fora, Minas Gerais. E surgiu a cobrança dentro do grupo:

“Vocês são fiéis a Bolsonaro ou não?”.

O que diferentes fontes contam é que as mulheres que tinham opiniões mais críticas passaram a ser visadas nas redes sociais a partir daquele grupo. Ficou explícito, no seio da direita antipetista, o caráter misógino dos bolsonaristas.

E começaram a surgir perfis anônimos que se tornaram o padrão de ataques do chamado gabinete do ódio.

As brigas provocaram a saída dos bolsonaristas do #InternetLivre. Eles passaram a se organizar de maneira mais radicalizada, nos dizem diferentes fontes, em outros grupos e listas.

Enquanto isso, o então candidato Jair Bolsonaro era ajudado por outros disparos de mensagens no WhatsApp.

E pelo apoio dos filhos. Carlos Bolsonaro é creditado pelo pai como um dos responsáveis pelas redes da família.

A segunda e fase final do #InternetLivre

O grupo de WhatsApp que fortaleceu o gabinete do ódio não existe mais. No entanto, ele teve uma segunda fase após a facada em Bolsonaro.

Dentro das discussões no aplicativo, sobraram a direita mais “moderada”, incluindo grupos como Vem Pra Rua e MBL. E os problemas continuaram.

Os integrantes restantes passaram a criticar o governo Bolsonaro logo em seu início, no ano de 2019. E o MBL manteve silêncio no grupo. Kim Kataguiri e seus amigos estavam apoiando a Reforma da Previdência.

O silêncio do grupo

Por causa da reforma, eles mantiveram silêncio sobre Bolsonaro e o bolsonarismo no começo de governo – gerando o rompimento final desse grupo.

Essas informações foram confirmadas por diferentes fontes.

“Com a Reforma da Previdência, no grupo se comentava os discursos para apoiá-la e eu fui contra alguns pontos, como o BPC e de novo tive novas discussões. Essas discussões acabavam em discursos misóginos. Foi assim que saí definitivamente do grupo”, desabafa Michele Prado.

Origens do gabinete do ódio

É um erro afirmar que o #InternetLivre criou o gabinete do ódio. Mas é correto afirmar que o grupo fortaleceu essa onda de ódio bolsonarista. A comunicação de extrema direita tem raízes em veículos de comunicação antipetistas e sem o profissionalismo da imprensa, como o Folha Política.

O DCM cobre desde 2015 esse site. É uma rede de extrema direita que envolve o Facebook e o YouTube, incluindo até o Movimento Contra Corrupção (MCC) que estava, na época do golpe contra Dilma, associado com Alexandre Frota. Os fundadores do Folha Política são Allan Carvalho e Ernani Fernandes, imitando a Folha de S.Paulo e atacando a mídia.

YouTube pagou ao gabinete de ódio

Ernani continua conduzindo o canal no YouTube. Nos bastidores, ele não se comporta como um bolsonarista e sim como um administrador de empresa preocupado em aumentar seu faturamento reproduzindo conteúdos de Jair Bolsonaro até hoje.

Um levantamento da Consultoria Quaest com o portal UOL apontou que o Youtube pagou R$ 15 milhões a canais acusados de disseminar fake news e que estão na mira do TSE e das autoridades.

Entre 2020 e 2021, só o Folha Política faturou R$ 8,8 milhões. O canal de Ernani, sozinho, publicou 12787 vídeos.

E há mais dados.

TSE e o Gabinete

O TSE encaminhou mais dados sobre o Folha Política para a revista Veja. Segundo o tribunal, o canal recebeu mais de R$ 3 milhões diretamente do YouTube. Com 2,58 milhões de inscritos, o canal fez mais de um bilhão de visualizações desde 2016.

A Polícia Federal e o Ministério Público suspeitam que servidores de políticos estejam doando parte de seus salários em uma espécie de “rachadinha virtual” para canais de Youtube bolsonaristas.

Como surgiu o nome ‘gabinete do ódio’?

O grupo de extremistas de Bolsonaro surgiu pela primeira vez na imprensa em uma reportagem de José Fucs no jornal Estado de S.Paulo em março de 2019. Eles eram chamados de “rede bolsonarista jacobina”.

A revista Crusoé, em uma longa reportagem de Felipe Moura Brasil, chamou esses influenciadores extremistas de “blogueiros de crachá”.

O nome gabinete do ódio foi dado pela deputada Joice Hasselmann na CPMI das Fake News em dezembro do primeiro ano de Bolsonaro no poder.

Gráfico mostra o Gabinete de ódio

Os grupos de influenciadores são descentralizados. O DCM recebeu uma lista de integrantes do gabinete do ódio no Twitter em maio de 2020, dentro de um dossiê. Na lista, os militantes se conectam com Eduardo e Carlos Bolsonaro.

O organograma que está com a CPMI das Fake News. Foto: Reprodução

Em julho de 2020, o Digital Forensic Research Lab no Medium, com dados do Facebook, mostrou o gabinete do ódio em atuação que foi tirado do ar pela própria rede social.

No organograma estão Jair Bolsonaro e seus filhos: Eduardo, Carlos e Flávio. Também estão os deputados Alana Passos e Anderson Morais, do PSL do Rio de Janeiro, além do Coronel Nishikawa, do PSL de São Bernardo do Campo. O assessor especial de Bolsonaro, Tercio Arnaud Tomaz, está envolvido nesse grupo.

Gabinete do ódio: Graph shows connections between accounts and pages; nodes with images represent officials, staffers and former staffers identified by the DFRLab. Accounts from the Bolsonaro family were not removed. An interactive version of the graph can be found here. (Source: @luizabandeira/DFRLab)

Nas duas listas diferentes, aparece um nome em comum: a youtuber e jornalista Camila Abdo, que foi assessora do Coronel Nishikawa.

O inquérito dos atos antidemocráticos, instaurado pelo ministro Alexandre de Moraes, tem um organograma simplificado baseado em reportagens da imprensa e investigações das autoridades.

Organograma no inquérito de investigação do STF. Foto: Reprodução

Discutir a desmonetização da desinformação é importante

O professor e pesquisador João Cezar de Castro Rocha é autor do livro “Guerra Cultural e retórica do ódio”. Especialista em Machado de Assis e Shakespeare, ele acompanha as redes de extrema direita e tem uma tese interessante sobre a militância bolsonarista.

“Todos nós sabemos o que é o MEI, que é o microempreendedor individual. Proponho que a retórica do ódio, a monetização da política, a transformação da política em uma modalidade de e-commerce, do comércio digital, criaram uma nova figura.

Essa figura é indissociável para entender o bolsonarismo. Seria outro tipo de MEI. O ‘Microempreendedor Ideológico’. É aquele militante que deriva da sua radicalidade uma monetização crescente dos seus veículos”.

Como solucionar?

E o pesquisador aponta como desmontar essas redes:

“É necessária uma discussão pública, responsável e séria sobre a necessidade de desmonetizar canais que favoreçam a radicalização ou canais que sejam meios de desinformação. 

João Cezar de Castro Rocha. Foto: Divulgação

Sem essa desmonetização, não seremos capazes de enfrentar a extrema direita”, completa.

Tentativa de internacionalização do gabinete do ódio

Segundo os jornalistas Jamil Chade e Lucas Valença, no UOL., o deputado Eduardo Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro tentam “internacionalizar o gabinete do ódio” para as eleições de 2022. O motivo é a queda de engajamento da rede de mentiras bolsonarista. Os irmãos filhos de Jair Bolsonaro buscam uma empresa internacional para fazer os disparos em massa, driblando a fiscalização do STF e do TSE.