“Temos todos apenas um sonho, viver”, diz jornalista ucraniana ao DCM

Atualizado em 26 de março de 2022 às 19:52
Jornalista ucraniana em entrevista ao DCM
A jornalista Tetyana Ogarkova, em entrevista ao DCM, no dia 22 de março.

“Temos todos apenas um sonho, viver”, afirma Tetyana Ogarkova, jornalista ucraniana. Antes moradora de Brovary, a 30 quilômetros de Kiev, a fundadora da ONG Ukraine Media Crisis e sua família se refugiaram no oeste do país.

Em entrevista ao DCM, ela narra em detalhes a vivência da guerra. Das primeiras horas, pensamentos, sentimentos e diálogos entre família e amigos às estratégias para fugir dos mísseis.

“As crianças pequenas não entendem muita coisa. Elas sabem que há inimigos. Elas sabem porque veem os tanques na televisão. Elas veem às vezes ruínas”, diz, referindo-se às filhas de três e cinco anos.

A guerra foi um profundo revelador. “Compreendemos que é apenas uma ilusão acreditar que nossa civilização é algo sólido”, analisa. “Um simples ataque militar pode destruir seu mundo em algumas horas, alguns minutos.”

Para Tetyana, seu país enfrenta na guerra um risco existencial. “Não há outra solução senão ganhar. Se não ganharmos, não haverá mais Ucrânia”.

As motivações de Putin, o papel do Brasil, o que está em jogo no mundo. Ogarkova reivindica um isolamento da Rússia.

Se o presidente Vladimir Putin acusa a Ucrânia de ser um país nazista, Tetyana afirma que a prática mostra o contrário. “O que parece realmente com o nazismo são as ações da Rússia hoje. São atos de um genocídio puro”.

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Veja a entrevista completa com a jornalista ucraniana

DCM: O que você viu e viveu desde o início da guerra, no dia 24 de fevereiro?

Tetyana Ogarkova: Estamos hoje no dia 27 da guerra. As primeiras horas e primeiros minutos da invasão russa serão inesquecíveis. Claro que esperávamos um ataque, mas esperávamos até o último minuto que fosse apenas um blefe russo.

Compreendíamos que era real, mas ao mesmo tempo esperávamos poder ser poupados. Eu fazia parte de uma geração que nunca havia vivido uma grande guerra, ainda que a guerra na Ucrânia dure desde 2014.

Em 2014, a Rússia já havia atacado a Ucrânia com a anexação ilegal da Crimeia e a ocupação de uma parte do Donbass, mas para a minha geração e meu meio a guerra era abstrata, mesmo se todos tivéssemos amigos que estiveram no fronte, que fizeram parte da rede de voluntários na guerra do Donbass. Mas a guerra do Donbass era uma guerra local.

O que não podíamos imaginar é acordar, como acordamos no dia 24 de fevereiro de 2022, com a detonação de mísseis que caem a alguns quilômetros de nós. Era cinco da manhã. Eram algumas detonações. Talvez duas, três ou quatro. Silêncio, mensagens dos amigos, mensagens da família: “começou”.

Não podíamos imaginar que a Rússia fosse capaz de atacar não o Donbass mas ao lado de nós. Eles fizeram ataques aéreos em Kiev, a capital, ao lado da cidade onde morávamos naquela época, Brovary, a dez quilômetros de Kiev. Era algo inimaginável para nós.

Imediatamente o pesadelo se desencadeou porque não conseguíamos dormir. As crianças continuavam dormindo em suas camas, como se nada estivesse acontecendo. Mas é claro que sabíamos que toda nossa vida de antes havia acabado. Que não haveria mais escola para as crianças no dia seguinte, coisas habituais para nós.

Logo começamos a trabalhar, a nos comunicarmos com a comunidade internacional, a ajudar a imprensa internacional.  Eu havia passado todo o primeiro dia da guerra respondendo muitas ligações do exterior para explicar o que estava acontecendo.

E percebemos a que ponto nossas vidas, a civilização é frágil. Imediatamente vimos filas enormes nas lojas. As pessoas começavam a entrar em pânico. Vimos que rapidamente houve penúrias. No segundo dia da guerra, já não havia certos produtos. Não podemos mais comprar pão.

Rapidamente, não podíamos mais sacar dinheiro em espécie. Compreendemos que é apenas uma ilusão acreditar que nossa civilização é algo sólido. Na verdade, um simples ataque militar pode destruir seu mundo em algumas horas, alguns minutos.

Em seguida, nos refugiamos na noite do primeiro dia da guerra na nossa casa de campo, como fizeram vários de nossos amigos. Nos dizíamos que se não nos encontrássemos no nono andar, onde fica nosso apartamento – o apartamento dos meus pais, por exemplo, fica no décimo sexto andar, o apartamento dos meus sogros fica no décimo terceiro andar -, nos dissemos que se nos refugiássemos mais perto do solo não seríamos tão visados pelos mísseis, razão pela qual fomos para a casa de campo, situada a dez quilômetros de Kiev.

O cálculo foi sem dúvida mal feito porque fomos parar ao lado da cidade militar. Então ouvíamos à noite mísseis balísticos, talvez a 10 ou 15 quilômetros de nós. Isso provocava uma espécie de terremoto. Os muros de nossa casa tremiam. Era um medo profundo.

Nossas crianças estavam conosco. Tenho três, duas são pequenas, de três e cinco anos. Eu tinha medo. Tudo se desencadeou muito rápido. Vimos ataques em todos os cantos da Ucrânia. Vimos que os grupos de sabotagem estavam presentes em Kiev. Felizmente, eles foram destruídos pelo exército ucraniano.

Nossos amigos nos contavam que viam pessoas armadas nas ruas de Kiev, cadáveres de soldados russos, já no segundo ou terceiro dia da guerra, o que era incrível. Eles atacaram diretamente Kiev.

O plano da Rússia era muito simples. Eles queriam decapitar nosso país de uma maneira extremamente rápida, em três dias. Eles não tiveram êxito, felizmente. Não podíamos sequer imaginar esse plano.

Ao longo da primeira semana, em Kharkiv, cidade a leste da Ucrânia, digamos a segunda capital do país. No início do século XX foi a capital ucraniana por alguns anos. Vimos que eles bombarbeavam o centro, não objetos militares, mas a Praça da Liberdade, prédios administrativos. Nos dissemos que eles são capazes de tudo. Depois, atacaram a torre de televisão de Kiev e por algumas horas não havia mais TV.

Na casa de campo, nos dizíamos: “amanha vão atacar a rede de internet, vamos acabar perdidos no meio do campo, isolados do mundo”. Tínhamos medo de que nos cortassem a eletricidade. Encontrar-se no campo sem saber se poderíamos passar pelas estradas, onde estava o exército, etc.

Foi nesse momento, ao fim da primeira semana que tomamos a decisão de partir para o oeste. O destino estava muito claro para mim, a minha cidade natal, a 450 quilômetros de Kiev. Temos família aqui e pegamos a estrada.

Também era uma experiência exaustiva porque todos estavam em movimento. Havia enormemente de pontos de checagem onde éramos fiscalizados, revistados pelo exército ucraniano, pela defesa territorial, que estava lá para proteger a capital e qualquer outra cidade dos grupos de sabotagem.

No primeiro dia, percorremos sete horas e avançamos apenas 150 quilômetros. Era quase impossível encontrar um quarto de hotel à beira da estrada. Todos os quartos estavam ocupados. Tivemos a sorte de encontrar um quarto para nove pessoas. Os demais, que não tiveram sorte, dormiam no chão dos corredores. Na minha vida, eu jamais consegui imaginar um tal movimento.

As pessoas, dominadas pelo medo, principalmente muitas mulheres com crianças, aposentados, etc., fugindo da capital porque eles queriam colocar suas famílias sob um abrigo.

Chegamos na cidade onde estamos no segundo dia. Havia um sentimento de pesar, de tristeza por ter de deixar Kiev, nossa vida, deixando para trás tudo que era caro; o apartamento, a cidade, as escolas, o curso de dança das minhas crianças, tudo que compunha nossa vida. Tudo foi destruído num piscar de olhos.

Tivemos de partir mas nos dizíamos: “voltaremos sem dúvida em uma ou duas semanas”. Naquele momento, havia um comboio de 72 quilômetros de tanques ao norte de Kiev. Nos dissemos que eles iriam bombardear a capital.

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Sentíamos o perigo mas tínhamos quase certeza de que o exército ucraniano era capaz de defender Kiev. Dizíamos que esse ataque terminaria em uma ou duas semanas. Infelizmente faz três semanas que estamos longe de Kiev.

A situação se degradou ainda mais, infelizmente. O comboio de tanques russos foi destruído. Ainda assim, há forças russas na periferia de Kiev, mísseis que o exército russo tenta fazer cair em Kiev. A cada noite, três prédios são destruídos com gente dentro.

Meu marido e meu pai voltaram a Kiev. Meu pai, por seu trabalho. Meu marido, para a ajuda humanitária e defesa territorial. Ele passou uma semana em Kiev e conseguiu evacuar uma família, juntando-se a nós no oeste.

Há um verdadeiro temor. Não faz sequer um mês que essa guerra começou, mas olhe para Kharkiv hoje. Olhe para Mariupol, cidade que conheço bem. Uma  cidade de 400 mil habitantes, próspera, interessante, onde havia várias iniciativas culturais, principalmente no começo de 2014. Ela não existe mais como cidade, é uma mistura de Srebrenica e Aleppo.

90% dos imóveis foram atingidos ou destruídos. Não há nada mais que funcione. Não há eletricidade, nem água, nem aquecedor. As pessoas morrem de fome dentro de casa. Eu tenho uma amiga, que pensei ter reconhecido num vídeo de pessoas que se escondiam num teatro bombardeado.

Eu pensei que fosse ela com seu filho de cinco anos. Mas felizmente eu descobri ontem que não era ela, que apesar de tudo ela conseguiu deixar Mariupol. Ela tem água, ela tem do que comer.

Mais ao norte há uma cidade muito antiga, Chernihiv é uma cidade muito antiga, com cavernas, monastérios, também está isolada, semi-cercada, bombardeada permanentemente. Há muitos prédios, inclusive históricos, destruídos. O número oficial de crianças mortas hoje é de 117. Depois, há os feridos, os que perderam os pais. A natureza desse ataque russo é desumana.

Mais de três milhões de ucranianos partiram para o exterior. É compreensível porque dá medo ficar na Ucrânia. 6 milhões de pessoas como nós migraram para o oeste. Há também os milhões que não podem se deslocar, simplesmente porque não têm carro, porque não conhecem ninguém… Não há uma família sequer que não seja atingida por essa guerra.

Hoje assistimos horrorizados ao que acontece. Estamos contentes em saber que nosso exército é muito mais forte do que o que pensávamos no início. Mantemos o ânimo. Compreendemos que a Rússia vai perder essa guerra porque historicamente não há outra solução. A questão é de tempo e preço.

Perdi conhecidos no início do conflito, pessoas que haviam sobrevivido a Donbass em 2014, a primeira guerra, mas não à segunda. Para nós, tudo o que Putin diz para justificar a guerra é apenas um delírio histórico, pois seu relato histórico não tem nenhum sentido. Ele é louco, cheio de falsificações.

(Quanto ao) seu temor da OTAN, não tínhamos perspectiva curta ou real para entrar na OTAN. Ele usa isso como argumento, mas é completamente falso. Seu projeto é riscar a Ucrânia do mapa porque ela não quer ceder, depois do preço que pagamos. Há pouquíssimas pessoas dispostas a um compromisso.

O que fez você ficar no país em meio a tantos bombardeios e destruição?

Dada nossa experiência, havia muitas perspectivas para partirmos ao exterior desde o primeiro dia dessa guerra. Diversos amigos nos contactaram para dizer que havia tais programas, como PAUSE (bolsa para cientistas em perigo), na França. Outros propunham alojamento na França e em outros países.

Minha irmã gêmea mora na Alemanha há mais de 15 anos. Poderíamos simplesmente ir para lá. Mas nos dissemos que enquanto aqui, no oeste da Ucrânia, não houver perigo real e direto para a vida… Fato é que há alertas aéreos. Hoje houve quatro. Às vezes são mais, às vezes são menos. Quase todo dia há um alerta noturno. Isso quer dizer que há algo voando por cima da sua cabeça e que vai cair em algum lugar. Nunca se sabe aonde.

Aqui podemos testemunhar, fazer nosso trabalho. Eu trabalho no Ukraine Crisis Media Center desde 2014. Meu trabalho é explicar à comunidade internacional o que é a Ucrânia. Seríamos muito mais úteis ficando aqui, dado que não há um perigo real para nós e nossos filhos, dado que nossas crianças vão bem, que não estão traumatizadas – não muito, dado que somos responsáveis por nossos pais, que são idosos, e como as pessoas idosas eles têm dificuldades de deixar sua casa… Tivemos a sorte de conseguir convencê-los a partir para o oeste. Conheci diversas pessoas da minha idade que não conseguiram convencer seus pais a partir para algum lugar.

As pessoas idosas se apegam a suas paredes, suas casas, seu modo de viver. Eles já viveram sua vida de uma certa maneira e não querem se deslocar. Também é por essa razão que ficamos aqui, pois queremos ser úteis nessa guerra de informação.

Meu marido vai pegar de novo a estrada para Kiev nos próximos dias. Eu também, para fazer ajuda humanitária e sem dúvida para evacuar pessoas de lá. Sabe-se que podemos partir a qualquer momento, que os riscos são enormes. Os russos detêm duas estações nucleares na Ucrânia, Chernobyl e ao sul.

Não dizemos que não deixaremos jamais a Ucrânia mas enquanto houver a possibilidade de ficar em condições quase normais, então preferimos ficar e ser úteis para a Ucrânia. Será sempre necessário alguém para explicar. Falamos diversas línguas. Podemos testemunhar, analisar, publicamos um texto no Ukraine Crisis Media Center todos os dias, um vídeo no YouTube, um podcast “Explain Ukraine”, que faço com meu marido.

Seu trabalho é justamente o de explicar à comunidade internacional, mas você consegue explicar o que está acontecendo a seus filhos?

Temos três filhos, de três, cinco e treze anos. A mais velha compreendeu imediatamente do que se tratava porque havia discussões na família sobre a língua usada. Antes da guerra, lembro que havíamos lhe dito que não se devia falar russo, pois na nossa família falamos ucraniano. Como na escola há muitas pessoas russófonas e ela às vezes trocava de língua.

Eu tentava lhe explicar que o russo é uma questão política, a uma adolescente, o que não é fácil. Eu me lembro que haviam dito frases de que a Rússia poderia nos atacar, “seus pais”, portanto nos, “serão os primeiros alvos”. Somos conhecidos por ter trabalhado em organizações que militam há anos contra a Rússia. Então não é (era) uma piada.

Ela compreendeu rapidamente conversando com colegas. Eles conversam muito entre si. Não há duas leituras sobre o que está acontecendo. Quando se escutam os mísseis e se vê a verdadeira face do que os russos fazem, compreende-se tudo. Então com ela, não tem problema.

As crianças pequenas não entendem muita coisa. Elas sabem que há inimigos. Elas sabem porque veem os tanques na televisão. Elas veem às vezes ruínas. Elas perguntam e eu explico que nosso país vizinho está fazendo isso e aquilo.

Eu não poderia dizer que elas estejam muito traumatizadas porque não viveram, felizmente, tudo o que as outras crianças da Ucrânia viveram. Felizmente para nós, mas infelizmente para as outras. Elas sabem o que é uma guerra e geralmente perguntam quando voltaremos para casa. Eu respondo que em breve, mas que não sabemos quando.

Recebemos hoje a notícia de que a usina de Brovary, nossa cidade, foi bombardeada. É muito perto da nossa casa. Não sabemos como vai acontecer, mas esperamos que nossa casa ainda esteja lá. Mas explicamos que tudo vai bem e que em breve a guerra terá acabado. E que poderemos voltar ao normal, voltar para nossa casa, voltar à escola, que lhes faz falta também. Explicamos que viemos para cá para lhes dar segurança.

Qual é o estado de espírito dos ucranianos nesse momento?

(suspiro) Eu diria que estamos muito motivados, muito mobilizados. A maioria, quase a totalidade, dos ucranianos entende que é uma guerra existencial. Compreendemos que não há outra solução senão ganhar. Se não ganharmos, não haverá mais Ucrânia.

Putin disse isso claramente há um ano. No verão de 2021, ele disse que a Ucrânia não existe, que é um Estado artificial, inventado por Lenin, distorções históricas que ele mencionou. Na cabeça de Vladimir Putin, a Ucrânia não existe. Eles não querem que a Ucrânia exista.

Nós, a minha geração, não tem outra escolha senão lutar, senão fazer essa guerra. Ninguém queria a guerra na Ucrânia. Mas quando se é atacado e o objetivo do inimigo é lhe destruir politicamente, culturalmente, fisicamente, como em Mariupol. É um genocídio.

Estamos muito orgulhosos do nosso exército. Não esperávamos ser capazes de nos defender dessa forma. Estamos muito orgulhosos da nossa defesa territorial, de todos os voluntários e redes de entreajuda, cada um tenta ser útil, inclusive as pessoas que partem ao exterior. Muitos que foram para o exterior tentam ajudar a Ucrânia com redes, enviando dinheiro, organizando cadeias logísticas para trazer por exemplo mercadorias das quais precisamos na Ucrânia. Por exemplo, coletes à prova de balas.

Temos todos apenas um sonho, viver. Viver normalmente, viver corretamente, viver como o fazíamos antes. Para fazê-lo, é preciso combater a Rússia. Não tem outra solução.

Como é o quotidiano hoje no país?

Se você considerar a Ucrânia de hoje, podemos falar em quatro planetas diferentes. Se você se colocar na pele de alguém que mora em Mariupol, quer dizer que você acorda no subsolo. Que você vai para fora em busca de água da neve. Se não há neve, para procurar água do rio, o que é perigoso.

Há bombardeios e se atira por todo canto. Você não tem o que comer. Você se aquece com fogo no corredor do prédio. Você aquece um prato ou o que você encontrou para aquecer com fogo, como as pessoas faziam há alguns séculos. Você arrisca sua vida a todo tempo.

Segundo estimativas, uma bomba cai em Mariupol a cada 10 segundos. É a vida de um ucraniano como eu, um ser humano como você, que vivia corretamente há um mês. Os números são muito baixos. No máximo 40 mil pessoas conseguiram deixar a cidade desde essa ocupação. Mariupol é uma cidade de 400 mil habitantes.

Se você olhar para Kiev, é outro planeta. Em Kiev, você não é bombardeado a cada 10 segundos. Mas você tem os alertas aéreos 10 vezes por dia. Você pode ir a uma loja, onde há alguns produtos e penúria de outras. Mas se você vai à farmácia e tem uma doença crônica, às vezes você termina sem medicamentos. Dizem que o estoque está vazio e que não se sabe quando vai ser reposto.

Também há um toque de recolher que dura 36 horas. Significa que você só pode sair do prédio em caso de alerta aéreo para se refugiar no subsolo. Você é privado da liberdade de circular, você leva 6 horas para atravessar a cidade de leste a oeste, experiência que tivemos, que meu marido teve há uma semana.

À noite, você treme. São ataques. Às vezes, são mísseis que caem a algumas dezenas de quilômetros de você. Você se pergunta se ela vai cair em cima de você ou não. Mas não é como em Mariupol. Você come mais ou menos corretamente, você é aquecido, há eletricidade, internet, você pode trocar mensagens.

Se você estiver no oeste, como eu, você pode sair à rua, num terraço de cafeteria, o que fazemos com frequência. Há todos os produtos nas lojas. Na farmácia, há quase tudo. Ainda assim há penúria. O único limite é que há alertas aéreos três vezes por dia, quatro no máximo, à noite também. Vemos que há pessoas na rua porque não levam isso a sério.

Em Kiev, se você não respeitar o toque de recolher, a defesa territorial pode lhe considerar como membro de um grupo de sabotagem. Então as liberdades são limitadas.

Falar hoje da Ucrânia é falar de mundos diferentes, nuances. Há outras cidades, outras condições, experiências muito diferenciadas.

O que são os grupos de sabotagem a que você faz referência?

Há grupos de sabotagem de diversos tipos. Os grupos de sabotagem ditos de elite foram enviados à Ucrânia nos primeiros dias dessa guerra. Seu objetivo, segundo nossos serviços de inteligência, era matar ou prender o presidente Zelensky, o primeiro-ministro, ministros ou membros do parlamento. A ideia deles era capturar pessoas que representam a Ucrânia. Isso fracassou, felizmente.

Segundo testemunhos do nosso serviço de inteligência, há outros grupos que estão presentes em Kiev, fazendo diversas coisas para deixar a população em pânico, colocar explosivos por exemplo em “playgrounds” para aterrorizar a população. Pois quanto mais civis morrerem, melhor para eles. Querem pressionar o presidente.

São frequentemente ucranianos que colaboram com Putin. Concordaram, sem dúvida, sob uma remuneração. São vários em toda a Ucrânia, não apenas em Kiev, mas sem dúvida no oeste. Por isso, estamos extremamente atentos. Eles representam um verdadeiro perigo para a Ucrânia, mas normalmente são eliminados com sucesso pelos nossos militares.

É a questão geográfica, como um lugar distante, que explica que um jornal de Kiev descrevia antes da invasão uma certa indiferença da população às manobras russas?

Acho que não se trata de uma indiferença. Todos os ucranianos tomaram consciência do perigo que a Rússia representa em 2014. Houve acontecimentos como Euromaidan, a revolta contra o presidente Yanukovich, porque não estávamos contentes com esse presidente pois ele recusou o acordo de associação com a União Europeia e suas tendências autoritárias. Yanukovich deixou a Ucrânia.

Para nós, ucranianos, eram acontecimentos internos, da nossa política interna. Mas foram interpretados pela Rússia como acontecimentos geopolíticos. Imediatamente fomos atacados. A Crimeia foi atacada nos dias em que Yanukovich deixava o país. Foi uma operação exitosa porque naquele momento não havia suficientemente forças na Ucrânia para defender a Crimeia porque era algo extraordinário. Não havia presidente no país, ninguém para defender a Crimeia. Foi um caos.

Houve a Guerra do Donbass, mas era uma guerra local, limitada a duas regiões. Ainda por cima, o exército ucraniano havia conseguido libertar uma grande parte dessas regiões e fixar uma linha que chamamos de “linha de contato”. Nessa linha, durante 8 anos, havia exército ucraniano contra exército russo, composto por gente que morava no Donbass mas dirigida por Moscou. Era uma guerra de trincheiras.

Durante oito anos víamos essas manobras de Putin, ele começa a concentrar tropas na primavera de 2021. Depois, houve um encontro entre Joe Biden. Nos dissemos: “talvez ele retire as tropas para apenas fazer uma chantagem virtual porque ele quer falar com Biden, porque ele quer dividir o mundo sem fazer a guerra, etc.”

Perdemos um pouco da vigilância, da sensação da realidade desse ataque. Quando ele começou a concentrar as tropas em novembro de 2021, nos dissemos: “já vimos isso. Vai terminar mais uma vez em negociações. Ele vai fazer pressão sobre os acordos de Minsk. Ele quer talvez outra coisa, se sentir igual a Joe Biden.”

Mas ele continuava aumentando as tropas semana após semana. No final de novembro ou dezembro, compreendemos que não era apenas uma chantagem, mas algo possível.

Eu me lembro de programas políticos de televisão onde todo mundo dizia “sim, é possível”. Eu daria 15% para essa possibilidade. Outra porcentagem para concentrar tropas não significa fazer guerra, mas que ele quer alguma outra coisa.

Não era indiferença. Hoje sabemos que o exército se preparava. Até o último minuto, esperávamos que tudo terminaria com alguma outra coisa. Putin reconheceu as repúblicas autoproclamadas de Donetsk e Lugansk. Era uma situação que “legalizava” uma situação que já existia porque a gente sabia que a Rússia já controlava todos esses territórios. Estávamos até mesmo aliviados: “todo esse barulho foi para nada, foi só pra isso”. Nós dizíamos que o máximo que podia acontecer era Putin se referir a essas às ditas constituições dessas repúblicas.

Nas constituições dessas repúblicas, está escrito que o território se estende até toda a região de Donestk e Lugansk. É muito mais amplo do que o território que eles controlavam. Dizia-se que talvez eles vão começar a nos atacar pelo leste, que talvez vão fazer uma guerra pelo leste para ter um pouco mais de terras.

Não podíamos imaginar, em todo caso nos, que se não somos especialistas militares, mesmo se tentamos analisar. Conheço diplomatas de nível muito alto, homens e mulheres políticos de alto nível. Todos compreendiam que isso podia acontecer. Estávamos todos chocados pelos bombardeios dos primeiros dias, os ataques que vinham do sul, do norte, do leste, de todo lado na verdade.

É um delírio, uma coisa que vai contra nossa maneira de viver, contra nossa maneira de ver as coisas.

Vivia-se uma ilusão em relação à Rússia?

Uma ilusão? Sim. Creio que a Rússia vive numa ilusão. Na ilusão de que é um país forte, com um destino forte, com um exército forte. Vimos ao que parece o exército russo. Costumava-se ter medo.

Não apenas nós, mas na Europa todo mundo tinha medo do exército russo. Esse exército incapaz de avançar. Hoje vemos que os russos quase não avançam mais. Eles estão cortados de sua cadeia logística. Vemos seus tanques, ausência de motivação, que viviam na ilusão de uma força que não existe. Tudo foi corroído pela corrupção. Tudo é corroído por esse orgulho artificial que não tem fundamento.

Eles querem se posicionar como uma força igual aos Estados Unidos, como uma força mundial, mas na verdade eles são patéticos. Eles não são fortes, nem poderosos. Há muita ilusão em torno da Rússia no interior da Rússia. No interior da Rússia, é um delírio histórico, sem fundamento.

Olhe para todas as perdas históricas da Rússia no século XX. Então, esse revanchismo histórico que eles estão tentando organizar é justamente para se vingar da derrota. Eles querem se vingar do ocidente. Mas o problema não está aí.

A Rússia pode ter toda a sua visão, mas o problema é que o ocidente e os parceiros que nos apoiam, lhes agradecemos todos os dias, também vivem na ilusão de que a Rússia representa algo de potente. Não se deve ter medo. Nosso exército mostrou de modo heroico que o exército russo não era tão forte como se acreditava.

Então o destino russo não é tão forte como se acreditava. É uma economia fraca. Eles ganham unicamente graças à chantagem. A chantagem nuclear. É a única razão pela qual as outras potências mundiais ainda hesitam a nos ajudar mais rapidamente e eficazmente possível.

O que Vladimir Putin busca concretamente?

Eu creio que ele busca afrontar o ocidente e para se afirmar como igual ao ocidente. Por ocidente, ele compreende claro os Estados Unidos e depois os outros. Ele busca provar que a Rússia pode ser uma potência mundial, igual aos Estados Unidos e talvez a China. Mas essa guerra vai demonstrar o contrário, pois para Putin, nessa guerra, não haverá outra solução, nem outra via, nem outro caminho senão perder. Ele vai perder essa guerra. Isso é muito claro.

A questão é simplesmente quando e a que preço. E que preço nós vamos pagar por isso. Para o ocidente, nossos parceiros ocidentais, a questão é que preço eles vão pagar por isso, mas ninguém no seu mundo permitirá à Rússia se tornar uma potência mundial.

Será uma derrota espetacular, cruel, sangrenta e irreversível, sem retorno para a Rússia, que vai condenar no mínimo duas ou três gerações de russos, que vão pagar por tudo isso por duas ou três gerações.

Foi um ato de suicídio político de Vladimir Putin? Ele matou seu futuro e, com ele, dos russos?

Sim. Você disse bem. É um ato suicida. Para Putin, não importa, ele não tem nada a perder. Ele está velho. Mas ele levou justamente todo um país junto com ele, inclusive gente que poderia ser útil à civilização. Eles estão todos condenados, pois quando a Alemanha nazista perdeu, ninguém lhe perguntava se você era a favor ou contra Hitler. Há uma responsabilidade coletiva.

Por décadas, a Alemanha carregou essa responsabilidade por seus atos de guerra. É justamente o que vão pagar os russos, por gerações por algumas gerações, queiram eles ou não. Esse é o destino, infelizmente, da Rússia. Mas a nossa questão, para nós ucranianos, é o preço a pagar.

Olhe para a Ucrânia de hoje, com Mariupol, Kiev, se essa guerra continuar por mais alguns meses não haverá mais Ucrânia. Tem que se terminar essa guerra o mais rápido possível para que o preço seja menor. Nós o entendemos mas é preciso que nossos parceiros europeus também.

Como é para os ucranianos ouvir as declarações de Putin, acusando-lhes de ser um pais nazista e justificando a guerra por uma suposta necessidade de desnazificação?

Para os ucranianos, não faz sentido nenhum. Nunca houve nazistas na Ucrânia. Nunca houve nacionalistas extremos. Ele aponta o dedo para alguns grupos de nacionalistas desde Maïdan e agita esse fantasma sobre eles.

No parlamento ucraniano, nao ha um partido nacionalista, contrariamente inclusive a outros paises europeus. Quer dizer que eles simplesmente inventam pretextos para nos atacar. Por outro lado, o que parece realmente com o nazismo são as ações da Rússia hoje. Essa maneira de destruir os civis, dessa política genocida que vemos em Mariupol, não deixar os civis partirem…

Eles pararam a coluna de evacuação, pessoas que estavam há semanas tentando fugir desse inferno. Elas foram detidas, já fora de Mariupol. Eles as detêm. Para fazer o quê?

O que eles querem é destruir essas pessoas. São atos de genocidio puro. Quando eles dizem que os ucranianos não existem porque são apenas os russos que existem, e quando ele pensa em termos de ampliaçao do espaço vital, vê-se muito bem que isso lembra coisas historicas da Alemanha nazista.

Ha muito mais paralelos entre o que a Alemanha nazista e o que a Russia faz hoje. Na Ucrânia, não há nada disso, não há unificação, nem nacionalismo implacável. Isso não existe mais. A Ucrânia escolheu como presidente um homem que é judeu.

Quando Putin diz que ele vai defender os russófonos contra as pessoas que falam ucraniano, acusando-os de serem nazistas, é preciso considerar que Zelensky, o presidente da Ucrânia, é judeu e falava russo antes de se tornar presidente. Hoje ele fala ucraniano, mas falava russo também.

Quando Putin diz que vai defender as populações russófonas, podemos mostrar o que ele fez em Kharkiv, uma cidade onde se fala muito mais russo do que em Kiev. Eles destruíram a cidade. Em Mariupol, fala-se russo também. Então é protegendo as populações russófonas que ele as elimina, ele as mata, ele as bombardeia. É essa a (sua) maneira de defender as populações. Tem alguma coisa errada nessa história.

Segundo uma pesquisa, 6% dos brasileiros tem uma imagem positiva da Rússia. Entre eles, há militantes de esquerda que veem na ação russa um combate ao imperialismo da OTAN. O que você lhes diria?

Eu fico muito contente em saber que são tão poucos. Não podemos fazer nada contra as teorias conspiratórias. Não podemos fazer nada contra as pessoas que acreditam que a OTAN é uma organização que ataca.

Sabemos bem que a OTAN é uma organização defensiva. Nunca se viu a OTAN atacar quem quer que seja. Por outro lado, a Rússia, que se levanta contra OTAN, que diz que é a OTAN que ameaça a Rússia, eu gostaria de lembrar que foi a Rússia que atacou a Ucrânia em 2014. Éramos um país neutro, pois acabávamos de sair do período Yanukovich, um país que não tinha realmente uma perspectiva na OTAN.

Vemos a Rússia atacar a Tchetchênia nos anos 1990, a Transnístria, na Moldávia, em 1992, depois vemos a Rússia atacar a Geórgia em 2008, a Crimeia, em 2014, o Donbass e a Ucrânia inteira em 2022. Quem ataca os países vizinhos? Quem cria conflitos que estavam suspensos? Quem imputa regiões inteiras a países? Quem viola a soberania de países ao lado? É a OTAN? Não, é a Rússia. É preciso olhar para os fatos.

O Kremlin relembra as ações da OTAN no Kosovo para apresentá-la como uma organização de ataque. 

É talvez o único argumento utilizado. O Kosovo tem uma outra história, que não tem nada a ver com a situação na Ucrânia. No Kosovo, há um bombardeio da OTAN, mas é preciso considerar em que momento ela interveio e com que objetivo. É um momento em que havia uma quantidade de vítimas, civis, de guerra, havia anos. Não tem nada a ver com a imagem da Geórgia em 2008, nem a Ucrânia em 2014.

Em 2014, éramos um país único, com a Crimeia, o Donbass, que falava russo, com um presidente que falava russo, que tinha uma política que ia para todo lado, pró-russa e pró-europeia, pois ele tinha prometido um acordo de associação. Então, era um país que não ameaçava ninguém.

É um país que não tinha guerra, não tinha conflito. Havia manifestações. Havia Maïdan, mas não havia grupo armado. A Rússia, querendo tomar o controle da Ucrânia, privou-a da Crimeia e impôs esse conflito sangrento, (antes) suspenso no Donbass, impôs uma agenda, nos impediu de viver tranquilamente.

Ele (Putin) impediu a vida de milhões de pessoas. No Donbass ocupado, havia 7 milhões de habitantes, mesmo se muitos partiram. Ele não parou, com o resto da Ucrânia.

A posição brasileira sobre a Ucrânia é completamente fragmentada. O Itamaraty condena a agressão russa. O vice-presidente é favorável a uma intervenção de exércitos estrangeiros na Ucrânia. O presidente Bolsonaro prega a neutralidade. O que isso lhe parece?

Não sei. Esperamos um apoio unânime. É melhor se posicionar, posicionar-se do lado da verdade, da justiça, da civilização. Sabemos que há anos Putin criou laços, redes. Não apenas no seu país, mas também em outros lugares, redes de apoio de homens e mulheres favoráveis a ele. Ele lhes pagou. Isso existe na Europa.

Há uma conscientização. Muitos abrem os olhos e se dizem que não querem isso. Vemos pouco a pouco que os países europeus abrem os olhos. É hora de abrir os olhos no Brasil também. Não se pode ser favorável a uns e outros. É melhor escolher aquele que vai ganhar.

É melhor estar do lado daquele que vai ganhar essa guerra. Não tenho dúvidas de que a Ucrânia vai ganhar essa guerra, com a ajuda muito importante dos nossos aliados do ocidente. É melhor escolher bem seu lado hoje para não se arrepender amanhã.

A resposta do ocidente e da comunidade internacional é suficiente para a Ucrânia?

Não acho que sejam suficientes. Temos hoje muito mais apoio do que pensávamos, mas muito menos do que merecemos. A ajuda e as reações favoráveis à Ucrânia são boas, mas vêm muito lentamente. Há um interesse para que essa guerra dure e que a Rússia não olhe para o ocidente. Alguns dirigentes pensam que se a Rússia está concentrada na Ucrânia que ela não olhar para outros lugares e atacá-los. Mas não é verdade.

Se houver governos que queiram evitar a todo preço o que eles chamam de Terceira Guerra Mundial, eles pensam fazê-lo deixando a Rússia destruir a Ucrânia. De qualquer modo, depois da Ucrânia será a vez dos outros.

Para parar a Rússia hoje, é preciso fazê-lo de uma maneira rápida, eficaz, solidária e fazendo-o pode-se minimizar as perdas, não somente ucranianas mas também mundiais.

Fazendo o quê?

Entregando armas à Ucrânia. O exército ucraniano já havia mostrado que era capaz de usar as armas ocidentais, principalmente as armas americanas, com uma eficácia igual ou superior à utilizada pelo exército americano.

As armas das quais o exército ucraniano dispõe são suficientes para parar o inimigo, para fazê-lo não avançar. As armas e a genialidade do exército ucraniano. Mas precisamos de muito mais de armas de contra-ataque, armas que nos permitirão atacar o exército russo presente no nosso território para recuá-los à fronteira russa e expulsá-los.

Falo dessas armas, aviões militares e outros sistemas. Cabe à OTAN e aos países da OTAN, se eles quiserem parar essa guerra o mais rápido possível entregar armas o mais rápido possível, pelo menos se eles não quiserem entrar nessa guerra.

Vamos ganhar sozinhos com as armas, mas é preciso muito mais armas e muito mais sanções. É preciso fazer com que o isolamento econômico da Rússia seja o maior e mais rápido possível para que eles não consigam ter dinheiro para fazer essa guerra. É preciso tirar a base econômica para que a Rússia seja incapaz de continuar sua agressão.

Sabemos que há um preço, que há cidadãos insatisfeitos com o aumento do preço do petróleo, mas se compararmos os inconvenientes do aumento do preço do petróleo com as centenas de milhares de ucranianos que morrem todos os dias e que morrem por vocês também…

O que a Ucrânia faz hoje é um dever de todos os países do ocidente, porque a ameaça não é unicamente contra a Ucrânia, mas contra todo o ocidente. Pagamos essa guerra com nosso sangue.

Então, que o ocidente pague pelo menos com dinheiro, com sanções, diplomacia. Há coisas excelentes que já foram feitas, mas também há muitos passos pela metade, muitas hesitações, muita lentidão, muita burocracia que nos impede de terminar essa guerra o mais rápido possível.

A Ucrânia antes da guerra era um país próspero, europeu. O nível de vida na capital era comparável ao dos parisienses, dos habitantes de Berlim, ou quase. Hoje nos encontramos numa situação de um país do terceiro mundo, de miséria absoluta. Há uma injustiça aqui.

Há um preço a pagar. Pagamos a nossa parte, muito caro, em termos de vida, dos nossos compatriotas, dos nossos cidadãos, das nossas mulheres, das nossas crianças, dos nossos soldados.

É preciso um isolamento cultural também para privar a Rússia de força para continuar essa agressão. Depois da derrota delas, voltaremos a falar sobre tudo, sobre como podemos coexistir, afinal a Rússia sempre nossa vizinha, poderemos falar do lugar da cultura russa, do lugar da cultura russa, da língua russa, mas depois da guerra e depois de que a Rússia pare de representar um perigo existencial à Ucrânia e todo o mundo ocidental.

Enquanto jornalista, você está preocupada em relação ao estado da liberdade de expressão, com as decisões tomadas na Europa, com a prisão de jornalistas na Rússia, as proibições de vocabulário?

Se falamos da Rússia, eu não me diria preocupada. Vemos o que acontece. Eles estão querendo se tornar um Estado totalitário porque eles proibem o Facebook, o Instagram. Eles refazem o caminho nessa direção. Eles designam “traidores”.

Dizer que estamos preocupados, sim e não. Sim porque compreendemos que eles não têm fundamentos econômicos, pois para se manter como Estado totalitário é preciso ter fundamentos econômicos muito sólidos. Claro que estamos preocupados. Podemos estar preocupados com um povo condenado.

Para nós, a Rússia hoje é um país condenado à derrota histórica, infelizmente. Não é a primeira e, sem dúvida, não a última. A cada vez é esse ciclo da história, que pode voltar e fazer emergir de novo esse delírio de potência da Rússia, potência imperial. Isso não se mantém.

Felizmente, eles se encaminham para a derrota. Então, preocupar-se com o estado do jornalismo na Rússia é uma questão a considerar, mas não é o que me preocupa mais hoje.