A razão cínica de um juiz negacionista que nega o que escreveu! Por Lenio Streck

Atualizado em 18 de novembro de 2021 às 9:09
Juiz
Juiz. Foto: Divulgação

Publicado originalmente no ConJur:

Por Lenio Streck

Aqui na ConJur, Martonio Barreto Lima e eu escrevemos uma crítica à sentença do juiz Danilo Dias Vasconcelos na qual ele absolve uma pessoa que negou o holocausto, entre outras coisas. Observação inicial: negacionismo é aqui entendido como atitude tendenciosa que consiste na recusa a aceitar a existência, a validade ou a verdade de algo, como eventos históricos ou fatos científicos, apenas das evidências que os comprovam (conceito de uso na tradição científica e que está inclusive no Google).

Bom, só para avisar, quem acusou a pessoa por crime de racismo foi o Ministério Público e não os autores do artigo.

Criticamos a sentença do juiz Danilo e não o autor, Danilo. Só que a resposta do juiz Danilo foi pessoal. Na verdade, o juiz deixou de lado a sentença (da qual o MP fez um ótimo recurso) porque ela é insustentável.

O nosso artigo (Martonio e Lenio) exerce o papel da crítica. Aliás, Danilo se defende dizendo que sua decisão defende a liberdade de expressão. Nosso artigo também defende o direito de criticar. Simples assim.

O juiz Danilo — como que a repetir a tese dos Dois Corpos do Rei (Kantorowicz) ou, aqui, Os Dois Corpos de Danilo — diz que mentimos e que ignoramos a sentença. Acusação grave. Vamos aos fatos.

Entre tantas coisas, o juiz Danilo disse que
“Essa é minha posição, transcrevo as lúcidas ponderações trazidas pela defesa, que adoto como razão de decidir:
(…) A priori, teorias revisionistas do holocausto, por si só, não implicam necessariamente em (sic) ofensa ou inferiorização do povo judeu, mas apenas na negação de um fato histórico, assim como há quem negue que o homem foi à Lua.”

Pronto. O que o leitor entende dessa passagem da sentença? Autoexplicativo. Só isso já é suficiente. Surpreende, muito, que o juiz agora venha a se desdizer. O fato — e fatos existem — é que o juiz Danilo absolve um advogado que disse que o holocausto é falacioso, além de acusar o povo judeu pela peste negra e outras quejandices. Peço que leiam a apelação do Ministério Público Federal. A peça também é autoexplicativa.

Vejamos o bizarro jogo de palavras ditas na réplica:
“O juiz duvidou da ciência? Não. O juiz não duvidou da ciência, ao contrário do que afirmaram Lenio e Martonio. O juiz apenas decidiu que negar a ciência não é crime”.

Ups. Como assim? O juiz apenas decidiu que negar a ciência não é crime… Foi isso? Pois é. Quer o juiz então dizer que, se a ciência diz que o holocausto existiu e que foi a maior tragédia que já atingiu a humanidade, e mesmo que o direito diga que é criminoso escrever livros dizendo que o holocausto não existiu, então é perfeitamente “normal” sair por aí praticando esse tipo de negacionismo? Não valeu nada o STF decidir o caso Ellwanger?

Ah: E de lambuja, tem a coisa dos judeus e a peste negra… E a peste suína e os judeus? E o “evento fantasioso” (sic) que foi o holocausto? Que tal?

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Juiz nega ele mesmo

No mais, o juiz Danilo envereda por um caminho deletério da negação dele mesmo. Primeiro diz que “essa é a minha posição, transcrevo as lúcidas ponderações da defesa, que adoto como razão de decidir”. Diz isso e depois nega?

Ah, então não foi o juiz Danilo quem comparou a negação do holocausto com a ida do homem à Lua. Foi a defesa quem disse… com a qual, coincidentemente, o juiz concorda e usa como razão de decidir. Com toda a lhaneza: isso sim é zombar ou ironizar o contribuinte e o leitor. Não, não fomos nós que ironizamos. Parece que o próprio juiz o fez. É um Voltaire da pós-modernidade: concordo com tudo aquilo que dizes, mas defenderei até a morte o meu direito de dizer que não fui eu quem falou. Ah, bom.

De novo: Ao dizer que a peça da defesa coincide com sua posição, o juiz Danilo escreveu:
“Justo por isso, farei a transcrição dos argumentos lá contidos e os adotarei como razão de decidir”.

Exato. Justo por isso. Justo por tudo o que está dito acima. Alguém consegue interpretar a frase melhor do que o autor? Onde está escrito “adotarei como razão” devemos ler o quê? O que eu adoto não é o que eu adoto? Onde digo Diogo, digo Diego, quer dizer, onde digo digo, digo…o quê, mesmo? Não estamos em Alice Através do Espelho em que um personagem dá às palavras o sentido que quer.

Com tudo isso, o juiz vem acusar a Martonio e a mim de mentirmos por dizermos o que ele disse… Ora, este ponto é central no debate porque daqui decorre quase toda a réplica do juiz Danilo que nos acusou de mentir. Lembro que o arrependimento tardio pode ser ineficaz, já que a sentença foi proferida. A sentença (que é direito) é um fato social posto pela mão humana…para usar um conceito caro ao positivismo.

Sigo. O juiz Danilo insiste na ideia de que as ideias ruins são combatidas pelas ideias boas, os maus argumentos enfrentados com os bons argumentos, a mentira superada pela verdade”. E conhecereis a verdade… pois é.

Diante de tal afirmação, só me resta perguntar ao juiz: a) as boas ideias e argumentos venceram e superaram o nazismo? b) Derrotaram ou superaram o fascismo? c) Impediram ou superaram o racismo nos EUA, ferida aberta até hoje?

Ora, desde o século 19, com o liberal Alexis de Tocqueville, que escravidão, racismo e segregação são apontados com um dos principais males daquela sociedade. E da nossa.

Exatamente por isso que recorremos a intelectuais, como Ernst Fraenkel e Susan Neiman para sustentar a necessidade de se conhecer a objetividade da história. Apoiar-se em cientistas autorizados pode ser tudo, menos pedantismo ou crítica pessoal. Todos devemos ter a capacidade de assimilar a crítica, especialmente quando ela é contundente. E procedente. O que parece não ser o caso do juiz Danilo.

Mas veja-se que há ainda um ponto mais fundamental: um ponto que, enfrentado, não deixa espaço para que se diga que ignoramos a sentença — verão que está tudo lá (sim, leiam a sentença) — e que, devidamente considerado esse ponto, “o leitor atento e qualificado saberá sempre diferenciar o sábio do charlatão”. Como bem diz o juiz Danilo.

Vamos lá. Vamos sofisticar a discussão. A sentença diz que “quanto ao aspecto fático, não há maiores questões a serem enfrentadas por este juízo: a publicação efetivamente foi feita pelo acusado, que não nega esse ponto”. Assim, portanto, o juiz segue para dizer que “a solução desta ação penal depende do valor que o intérprete confere ao direito à liberdade de expressão”. Bem, corretíssimo. Vemos aqui exatamente aquilo sobre o qual já falava Dworkin: não temos somente desacordos empíricos, sobre o que ocorreu ou não ocorreu; temos desacordos teóricos, desacordos sobre a natureza do direito. E é aqui que erra o juiz Danilo, depois de acertadamente reconhecer que respostas jurídicas dependem de um exercício interpretativo daquilo que decide.

Primeiro ponto: não é o juiz Danilo que deve “se filiar”, como ele diz, a esta ou aquela corrente sobre liberdade de expressão. Com toda lhaneza, e digo isso porque já repito há anos sem pessoalizar, pouco importa o que o juiz Danilo — o que qualquer juiz — acha ou deixa de achar sobre liberdade de expressão. Importa o que o Direito diz sobre a liberdade de expressão, e isso é muito maior do que um dispositivo de lei isolado. A integridade exige que nossos conceitos sejam articulados em equilíbrio e coerência. Liberdade de expressão, no Brasil, num contexto jurídico, é um conceito a ser significado pelo paradigma constitucional consolidado desde 1988.

A peça do MP é exemplar nesse sentido. É exemplar porque eu concordo com ela? Não. Ela é exemplar porque ela é jurídica.

A peça do MP é exemplar porque dialoga com material jurídico e, fundamentalmente, com decisão do Supremo no caso Ellwanger. Não com um precedente entendido como regra, mas com os princípios que fundamentaram a decisão do Supremo de então.

E a decisão do juiz Danilo? É um ensaio sobre o que ele pensa sobre liberdade de expressão. Talvez desse um bom texto no blog da Jovem Pan, não é de todo mal escrito. O problema é que se trata de uma decisão judicial. Sim, uma sentença! Que deve ser jurídica. Juiz é um agente político do Estado e tem responsabilidade política. E ficará registrada na história institucional do judiciário.

Por fim, sim, nós sabemos, Martonio, eu e o resto da comunidade jurídica, que “a pessoa do réu não se confunde com a pessoa do advogado que o defende, tampouco com a pessoa do juiz que o julga”. Mas há limites para a tese dos dois corpos do rei: não dá pra ser voluntarista na sentença, colacionado os supostamente “lúcidos” argumentos da defesa sobre um ato que consiste, diz a defesa — e diz o juiz, já que assume concordar com ela — “apenas na negação de um fato histórico, assim como há quem negue que o homem foi à Lua”.

Então: disse ou não disse? O que é “dizer” em uma sentença?

Mais: o juiz pode achar legítima a negação de um fato histórico, assim como pode negar que o homem foi à Lua. Só não pode dizer que é o Direito quem diz isso. Isso ele não pode fazer.

Sim, a pessoa do réu não se confunde com a do advogado assim como a pessoa do juiz não se confunde com a pessoa da defesa que ele acolhe. Mas, aqui, é o próprio juiz quem diz concordar com os argumentos dessa mesma defesa — fazendo assim um juízo de moralidade política sobre liberdade de expressão.

Nosso Voltaire contemporâneo, que “se filia” àquilo que diz ser a liberdade de expressão nos moldes “dos americanos”, pode dizer que são lúcidos os argumentos da defesa. Só não dá para dizer depois que não disse. Menos ainda, dizer que é o Direito quem diz.

O juiz Danilo sabe bem. Mas, mesmo assim, diz. A razão cínica — e uso, tecnicamente, o conceito cunhado por Peter Sloterdijk — com todo o seu desprendimento, deixa intacto o nível fundamental da escolha do juiz que diz sem dizer e diz que é o Direito quem diz.

Para uma boa leitura jurídica, recomendamos os argumentos do Ministério Público na apelação. Diz bem o procurador: se o réu e o juiz têm razão, não haverá mais crime contra a honra. Tudo será liberdade. Bom, se tudo é, nada é.

A propósito, vai aqui um bom conceito de liberdade de expressão: significa poder criticar más sentenças de juízes que atribuem ao direito suas próprias leituras sobre os significados de nossos conceitos.

Numa palavra: nosso artigo, meu e de Martonio, criticou a decisão; e agora, aqui, treplico a réplica que pessoalizou. Com fortes acusações. Esta tréplica apenas usou argumentos do próprio replicante. Transcrições, Literais. Sem ilações. In claris cessat interpretatio. Por isso, o texto foi assim redigido. Aproveitando as próprias palavras. Que já estavam na sentença. Digamos que é um texto autossustentado.

Sem perder a lhaneza, é claro.

 

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