Exclusivo: Lava Jato tinha “delação financiada” que procuradores consideravam “calcanhar de Aquiles”

Atualizado em 17 de novembro de 2021 às 16:54
Os procuradores Orlando Martello, Carlos Fernando e Dallagnol, da Lava Jato

No dia 18 de abril de 2019, o procurador da Lava Jato, Orlando Martello, que assina as denúncias contra Lula nos processos do triplex e Atibaia (ambos já anulados), dispara mensagens nervosas para seus colegas.

“Delação financiada”, diz ele, dando em seguida o link para uma reportagem com esse título, publicada na revista Piauí. 

“Tem que tomar cuidado com isso! Pode ser outro calcanhar de Aquiles”, adverte.

“Delação financiada” pode ser “calcanhar de Aquiles”, diz procurador

A mensagem é inédita e foi obtida com exclusividade pelo DCM, que teve acesso ao arquivo da Spoofing, operação da Polícia Federal que investigou o vazamento de diálogos de procuradores da Lava Jato e do juiz Sergio Moro em grupos de Telegram. 

Você pode ler mais reportagens desta série aqui: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9.

Martello tinha razão. Dentre as inumeráveis distorções e irregularidades observadas em toda a Lava Jato, a remuneração financeira aos delatores é uma das mais escandalosas e com isso pode ser considerada, seguramente, “outro calcanhar de Aquiles”, ou ponto-fraco, da operação. 

Mas por isso mesmo também é uma das mais reveladoras de como a Lava Jato transformou o instituto da delação premiada numa arma de destruição em massa de empresas, empregos e… governos democráticos.  

Para cumprir a agenda política dos procuradores, as delações foram alteradas, inventadas, copiadas, vendidas, usadas como chantagem, vazadas seletivamente, sempre de olho na repercussão midiática, no clima político do país, e no calendário eleitoral.

A reportagem citada por Martello menciona o caso da CCR, empresa de concessão de rodovias, aeroportos e barcas, controlada pelos grupos Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa. 

O que aconteceu ali? 

Sob a pressão da Lava Jato, que mantinha a empresa asfixiada, sem poder continuar obras já empenhadas ou participar de novas licitações, seus controladores decidiram transformar seus executivos em delatores remunerados. Elaborou-se um contrato prevendo que os delatores receberiam, por cinco anos, 78 mil reais por mês. E sem trabalhar, porque deveriam se desligar da companhia. 

O que eles tinham de fazer? Apenas assinar uma delação inteiramente combinada entre os advogados da empresa e os procuradores. Com isso, a empresa receberia o aval para um acordo de leniência e poderia voltar ao mercado, participando de licitações públicas. 

A reportagem informa que a CCR separou R$ 71 milhões para o pagamento dos delatores.  

“Bagunça! Esquizofrenia!”, assim o advogado Walfrido Warde, autor de um livro sobre o impacto econômico da Lava Jato sobre a economia brasileira (que citaremos novamente ao final da reportagem), descreve os métodos usados pela operação para arrancar acordos de leniência das empresas. 

Quase todas as empreiteiras investigadas pela Lava Jato usaram o mesmo artifício da CCR, de comprar e combinar delações.

Um executivo da OAS, por exemplo, a empresa cujo principal sócio, Leo Pinheiro, foi o delator mais importante na condenação do ex-presidente Lula no processo do triplex, denunciou que os delatores do grupo receberam até R$ 6 milhões, por cabeça, para “ajustar os depoimentos”. 

Ajustar, naturalmente, conforme os interesses combinados entre empresa e… Lava Jato. 

O caso Odebrecht, que empregava 175 mil funcionários, pode ser mais um, dentre tantos, “calcanhar de Aquiles” da Lava Jato. 

Segundo informações do jornal Valor Econômico, a empresa pagou R$ 1,5 bilhão para 77 delatores apresentarem depoimentos combinados previamente com advogados e procuradores. 

O acordo de delação da Odebrecht foi assinado ao final de 2016. 

As leis da dialética de Engels, neste caso, não funcionaram, e a quantidade não se converteu em qualidade. Das 286 frentes de investigação abertas a partir das delações da Odebrecht, quase todas foram arquivadas por falta de provas, segundo reportagem do Intercept de maio deste ano, intitulada sugestivamente “O fiasco do fim do mundo”.  

Elas serviram muito bem, todavia, à agenda política da Lava Jato, de dar a impressão de grandeza, alimentando a atmosfera de criminalização da política que desembocaria na eleição de Jair Bolsonaro em 2018. 

Nos primeiros meses de 2017, todavia, os procuradores ainda estavam insatisfeitos, sobretudo com o depoimento de Emílio Odebrecht, patriarca do grupo, porque ele não havia apresentado nada concreto contra o alvo principal dos procuradores, o ex-presidente Lula. 

Em 14 de março de 2017, Laura Tessler, procuradora do “núcleo duro” da Lava Jato de Curitiba, e que também assina as denúncias do triplex e Atibaia contra o ex-presidente Lula, continuava no encalço de Emílio. 

Tessler defende pressionar Pedro Novis, um ex-executivo da Odebrecht que estava mentalmente fragilizado pelo Mal de Parkinson, uma doença neurológica degenerativa que ataca especialmente as faculdades mentais como raciocínio e memória. 

Em outra mensagem obtida com exclusividade pelo DCM, Laura conversa com um colega procurador sobre como “colocar Emílio em cheque”. 

A estratégia era simples: pressionar Novis para ele “detonar o velho Emílio”.

O diálogo é de 14 de março de 2017. 

Novis vinha sendo pressionado pela Lava Jato desde novembro de 2016. 

A propósito, os procuradores já sabiam que Novis tinha Mal de Parkinson, e faziam troça disso, conforme revelado por Kiko Nogueira, num dos capítulos da série iniciada pelo DCM, também com base em mensagens inéditas da operação Spoofing.

Todos esses movimentos da Lava Jato tinham o objetivo de apertar o cerco contra o ex-presidente Lula. 

Outros diálogos de procuradores obtidos no âmbito da operação Spoofing ajudam a entender o contexto.

Voltemos um pouco, para o dia 5 de março de 2016, um pouco mais de um mês antes do impeachment da presidenta Dilma e no dia seguinte à ilegal condução coercitiva do ex-presidente Lula. 

Neste dia, uma procuradora da força-tarefa da Lava Jato junto à Procuradoria Geral da República explica que o objetivo central das delações extraídas da Odebrecht era “atingir Lula na cabeça”.

Objetivo era “atingir Lula na cabeça”

A procuradora Anna Carolina Resende Maria Garcia enfatiza que o segundo alvo mais relevante seria o senador Renan Calheiros, que na época ocupava o cargo de presidente do Senado. Ela ainda menciona estratégias espúrias de pressão e chantagem contra ministros do STF e STJ, dizendo que “está de bom tamanho, na minha visão, atingirmos nesse momento o ministro mais novo do STJ”.

Em 29 de novembro de 2016, a mesma Anna Carolina, num chat com seus colegas de Curitiba, informa que terminou a “análise” da delação de Emílio Odebrecht e a considerou muito ruim, porque não trazia provas, apenas “agendas”. 

A expectativa dela (e de outros procuradores, como revelam diversos diálogos) é que a delação de Emílio seria “decisiva para lascar Lula”. 

Carolina reclama que as  “declarações [de Emílio Odebrecht] estão uma m…”, apesar de considerar que os “documentos” seriam suficientes para “ferrar Lula com força”. 

Diálogos extraídos da Vaza Jato

As duas mensagens acima foram publicadas em reportagem do Intercept, assinada por Rafael Neves, no dia 25 de maio de 2021. 

Em seu livro “O Espetáculo da Corrupção: como um sistema corrupto e o modo de combatê-lo estão destruindo o país”, o advogado Walfrido Warde denuncia que os métodos usados pela Lava Jato fizeram a Odebrecht demitir 95 mil funcionários, a Andrade Gutierrez, 90 mil, a OAS, 80 mil, a UTC, 20,3 mil, a Engevix, 17 mil, a Queiroz Galvão, 13 mil, para citar apenas as principais. 

A Petrobras, por sua vez, lembra o autor, demitiu quase 260 mil trabalhadores. 

As perdas provocadas pela Lava Jato na economia brasileira, segundo estudo da consultora GO, mencionado no livro de Warde, foram da ordem de R$ 187,2 bilhões, ou 3,4% do PIB. 

“Foi um banho de sangue, no mesmo estilo de Sarajevo”, resume o advogado. 

No afã de “ferrar Lula com força”, a Lava Jato ferrou a economia brasileira, destruindo milhões de empregos, além de desestabilizar o regime democrático, o que abriu espaço para a ascensão ao poder de um grupo fascista, do qual fez parte, como ministro da Justiça, o próprio juiz que coordenou a operação em Curitiba.  

Encerramos a reportagem com um trecho do livro de Warde:

“A morte da empresa é duplamente desastrosa. É odiosa porque mata um núcleo gerador de riqueza, de renda, de emprego e de receitas estatais, por meio de impostos a que a empresa se submete, mas também porque põe fim a qualquer chance de ressarcimento da Administração Pública. 

Matar a empresa aplaca um desejo compreensível de vingança, mas leva a uma imolação individual e coletiva, cujos efeitos adversos, em muitos casos, superam aqueles impostos pela corrupção”. 

Outro lado

Desde o início da série, temos entrado em contato com todos os procuradores ou ex-procuradores citados, mas suas assessorias responderam que, no momento, eles têm preferido se manter em silêncio.