Por que Putin seduziu tanto a extrema-direita quanto a esquerda? Por Eduardo Febbro

Atualizado em 10 de março de 2022 às 21:59
Por que Putin seduziu tanto a extrema-direita quanto a esquerda? Foto do presidente com expressão séri e sobrancelhas levantadas.
Eduardo Febre faz análise sobre os apoios que o presidente Vladimir Putin vem recebendo de diferentes orientações políticas. Foto: Getty Im

O generalizado e múltiplo antagonismo entre a Rússia e as potências ocidentais convergiu na guerra na Ucrânia, e esse episódio marcou o fim de uma leitura do mundo que, no Ocidente, influenciou todo o pensamento estratégico desde finais dos anos 90, ao mesmo tempo que colocou no centro do atual confronto o mais alto grau de uma doutrina geopolítica que tem ditado a posição da Rússia durante várias décadas. A leitura do mundo corresponde ao livro de Samuel Huntington “O Choque de Civilizações” publicado em 1996 e cuja interpretação tem acompanhado e moldado correntes estratégicas.

A doutrina, estudada em todos os centros de estudos de relações internacionais, pertence ao político, acadêmico e orientalista russo Yevgeny Primakov. Ex-ministro das Relações Exteriores durante a gestão do falecido presidente Boris Yeltsin, Primakov é um dos estrategistas mais brilhantes do final do século 20 e foi ele quem moldou a direção da política externa russa com sua doutrina.

Em primeiro lugar, a doutrina Primakov propõe uma diplomacia triangular articulada em torno das relações com a China, os Estados Unidos e a Europa, a fim de contornar o unilateralismo dos EUA e opor-se assim ao caráter unipolar do mundo após a queda do Muro de Berlim (1989) e a desagregação da União Soviética (1991).

Primakov escreveu na sua doutrina: “É um erro acreditar que os Estados Unidos são tão poderosos a ponto de todos os acontecimentos importantes no mundo gravitarem à sua volta; tal abordagem ignora a enorme transformação que é a transição de um conflituoso mundo bipolar para um mundo multipolar”. O objetivo de Primakov era impedir o desenvolvimento de uma esfera unipolar com os Estados Unidos no centro, impedir que a Aliança Atlântica estendesse suas armas aos países do Leste Europeu, e não permitir que a Rússia fosse vista como uma potência empobrecida e sem influência global.

A partir do ano 2000, o Presidente Vladimir Putin reativou essa doutrina e hoje é ela quem comanda as suas decisões. Não há dúvida de que durante muito tempo o Ocidente se aproveitou da fraqueza estrutural da Rússia pós-soviética e expandiu as suas esferas de influência através da OTAN. Entretanto, ao contrário das afirmações irresponsáveis e precipitadas, não existe nenhum tratado internacional assinado pelo qual a OTAN tenha se comprometido formalmente a não expandir as suas bases militares. No dia 1º de fevereiro, Putin declarou: “Gostaria de explicar mais uma vez a lógica do nosso comportamento e das nossas propostas: como sabem, nos foi prometido que a OTAN não deslocaria as suas infra-estruturas para o Leste, nem em um centímetro”. O Ocidente prometeu e não cumpriu. No seu sítio web, a NATO afirma que “nunca existiu um acordo desse tipo”.
Estruturadores

O que é certo é que a doutrina de Primakov e o livro de Huntington funcionaram como estruturadores de parte do mundo e até mesmo posições políticas se organizaram em torno de ambas as ideias, especialmente na extrema-direita e na chamada esquerda radical.

“O Choque de Civilizações” é essencial para compreender como, no Ocidente, as consciências e estratégias foram sendo moldadas. Para o autor, o elemento central de uma civilização sempre foi a religião de referência e a cultura, ambas utilizadas por Huntington para apresentar o seu “choque” entre as civilizações e que já não é a ideologia ou a conquista territorial, mas a religião quem organiza os conflitos. A ascensão do islamismo radical fez de Samuel Huntington o papa do pensamento estratégico; os ataques de 11 de Setembro de 2001 validaram o seu postulado e a sua teoria tornou-se um credo inquestionável.

O inimigo era, para Huntington, o Islã. Ele dividiu o mundo em oito civilizações: ocidental, eslavo-ortodoxa, islâmica, africana, hindu, confucionista, japonesa e latino-americana. A ortodoxia eslava fazia parte do eixo civilizador, um aliado contra a barbárie do extremismo islâmico.

A entrada das tropas russas na Ucrânia fortalece a doutrina de Primakov, ao mesmo tempo em que, com ainda mais força, contraria a teoria de Huntington já que os exércitos não são comandados por fanáticos islâmicos, mas por Moscou. Vale a pena lembrar que a capital da Rússia tem sido rotulada de “A Terceira Roma” desde a queda de Constantinopla, quando lhe foi confiada a missão de preservar a fé e as tradições ortodoxas da Roma Imperial. Fora da Rússia a doutrina Primakov funcionava como um divisor político, da mesma forma que O Choque das Civilizações servia como uma forma de estar do lado de um mundo branco e liberal.

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O duplo papel de Putin

Os posicionamentos foram particularmente drásticas em países como a França. A extrema-direita francesa viu em Vladimir Putin a única figura contra a arrogância dos EUA e o símbolo capaz de dizer não ao unipolarismo do império, à mistura cultural. E o Islã. Putin foi sempre a encarnação ideal de uma figura com uma dupla função: tanto um escudo contra o imperialismo estadunidense, quanto como um escudo contra o islamismo.

Em mais do que uma ocasião, o candidato de extrema-direita Eric Zemmour chegou ao ponto de dizer que “a França precisa de um Putin”. Zemmour escreveu no diário Le Figaro: “Putin tornou-se o último obstáculo ao furacão do politicamente correto, uma ideia que saiu dos Estados Unidos e destrói todas as estruturas tradicionais – família, religião, pátria – para impor a lei planetária do mercado. Putin rejeita energicamente o multiculturalismo e luta contra o islamismo na Rússia e no estrangeiro. Ele não se sente intimidado por lobbies feministas e gays”.
Em 2017, o candidato presidencial de extrema-direita Marine Le Pen visitou Putin em Moscou. Embora não seja seguidora d’O Choque de Civilizações, Marine Le Pen elogiou “o novo mundo” que Putin estava cunhando.

Paladino da esquerda

A esquerda, por sua vez, também percebeu no presidente russo uma espécie de Hércules à frente de uma potência nuclear e cultural suficientemente forte para bloquear os caprichos imperialistas. O líder da França Insubmissa (France Insoumise), Jean-Luc Mélenchon, sempre apoiou Putin – muito antes da guerra-, apoiou as reivindicações da Rússia e denunciou a forma como “a OTAN provoca uma escalada a sangue-frio”.
Essa esquerda é hoje rotulada na França, pelos seus oponentes, como “cúmplice ativo” ou “idiota útil”. A guerra na Ucrânia deixou a todos numa posição incômoda. As eleições presidenciais de Abril de 2022 obrigaram-nos a abandonar as suas posições, tanto na extrema-direita como na esquerda. Pressionados pelas pesquisas de opinião, os candidatos retrocederam a toda a velocidade. Zemmour e Le Pen questionaram a ação militar e Mélenchon a descreveu há alguns dias como um “crime contra o interesse humano geral de nosso tempo”.
Vladimir Putin seduziu dois adversários ao mesmo tempo: a extrema direita com sua aura napoleônica, sua personificação da autoridade imperial e sua oposição ao Islã e sua homofobia. Ele é um “macho homem”, costumava dizer Eric Zemmour; a esquerda ficou fascinada por sua hostilidade à hegemonia dos EUA nas relações internacionais herdada da doutrina Primakov.

Faz mais de um quarto de século que um livro escrito por um ensaísta conservador estadunidense e uma doutrina elaborada por um estrategista russo se confrontam nos bastidores da história. A guerra força definições e nos obriga a sair da histeria radical “anti” Putin ou “pró” OTAN e fugir das manipulações servis da direita argentina.
Os acontecimentos atuais nos convidam a ir mais longe e a pensar no nosso mundo, o nosso Sul, sem ambas as dependências. Nem Putin nem OTAN. O Choque de Civilizações caiu na realidade e a doutrina de Primakov reencarnou em exércitos que hoje avançam sobre as terras da Ucrânia. Evgeny Primakov está vencendo uma batalha póstuma. A nossa liberdade de pensar sem ódio e acima das querelas entre as potências imperialistas poderá perder outra batalha.

Publicado originalmente no Página 12

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