Onde Round 6, novo fenômeno da Netflix, encontra Luciano Huck. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 5 de outubro de 2021 às 19:34
Veja Round 6
Round 6. Foto: Netflix/Divulgação

Colunista Nathalí Macedo, do DCM, escreve sobre Round 6, nova série da Netflix, e sobre o apresentador da TV Globo que quase virou candidato a presidente da República. O texto também é sobre Luciano Huck.

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Round 6 da Netflix

O sucesso vertiginoso de Round 6 não é um acaso. A série coreana de terror e crítica social está disponível na Netflix e deve se tornar em breve a mais vista do catálogo, desbancando “Bridgerton” (que lidera o ranking por ter sido assistida por 82 milhões de contas de assinatura).

Pudera: somaram uma construção de personagens impecável a atuações sensacionais (como a de Jung Ho-Yeon, minha preferida até agora) e um roteiro que parece (parece?) ter sido milimetricamente pensado pros nossos tempos: tempos em que a miséria, antes “apenas” romantizada, é explorada como entretenimento.

A série é ambientada em uma ilha onde centenas de jogadores pobres e endividados participam de competições inspiradas em jogos infantis em busca de um prêmio milionário: os vencedores levam o prêmio em dinheiro, e os derrotados morrem. Algo entre “O Poço” e “Jogos Mortais” – mas com uma qualidade narrativa exponencialmente maior, como é de praxe para os coreanos.

Quais as chances de você assistir a uma série distópica e sombria como esta e identificar na história diversos pontos de convergência com a realidade?

Se você for brasileiro, todas.

Que o diga Luciano Huck, que sempre fez da miséria dos outros o seu IBOPE e acabou protagonizando os melhores memes relacionados à série. Os memes comparam – com um assustador fundo de verdade – a “carreira” de Huck (phD em humilhar pobres na TV) aos jogos macabros de Round 6.

Não, ninguém foi obrigado a competir em jogos letais pra conseguir quitar as próprias dívidas (ou ao menos não que a gente saiba), mas, dentro dos limites de uma “legalidade” fajuta, o sofrimento dos pobres segue sendo o entretenimento dos ricos, e Luciano Huck não é o único a se beneficiar desse fenômeno sinistro.

Há leis que (ainda) proíbem ricos de fuzilarem pobres em reality shows, mas elas não dizem nada sobre humilhá-los, certo? Já que pobre ainda é considerado gente pela Carta Magna, resta aos Huck’s’ da vida “apenas” expor pobres a situações vexatórias em rede nacional.

E o pior e mais nojento disso é que essas pessoas chamam isso de “ajudar ao próximo”, e cola. Colou durante anos. Para alguns, continua colando.

Num país com justiça social, não haveria espaço pra gente como Luciano Huck. O fato é que eles dominam o sistema que fabrica o pobre e, não satisfeitos, fazem da pobreza um show sádico que os torna ainda mais ricos. Eis a nossa distopia.

É claro que Round 6 é uma metáfora super aumentada. Nos ditames de nossa “civilidade”, não é assim que dizimamos os pobres na vida real: por aqui, se faz isso condenando-os a uma miséria cada vez mais degradante que culmina na fome – essa sim, mortal.

É precisamente por esta razão que as distopias são tão bem-vindas: chocados com o absurdo de uma narrativa macabra e “impossível”, somos capazes de enxergar com mais clareza os absurdos da realidade – que não apenas são possíveis, como também cotidianos.

São 19 milhões de brasileiros passando fome, uma em cada três crianças anêmicas e um auxílio emergencial médio que só compra 38% da cesta básica. Em um cenário como este, é necessário fuzilar pobres em um paredão?

A resposta é não. É possível mata-los de maneiras mais “civilizadas”.

Enquanto isso, a fortuna de Paulo Guedes só aumenta em um paraíso fiscal. Eles enriquecem, cada vez mais literalmente, às custas da nossa miséria. Assim como os jogadores de “Round 6”, nós, os pobres, não temos nome: somos números pra eles. Somos descartáveis.

Seriam necessárias mais algumas páginas pra darmos conta de todas as metáforas potentes que a série apresenta, mas esta é a principal para o paralelo que esse texto propõe: a metáfora da democracia.

No jogo macabro, os participantes não são exatamente sequestrados: eles têm escolha. Eles podem escolher sair do jogo e continuar sendo massacrados pela pobreza lá fora. Na trama, a democracia funciona perfeitamente na teoria, mas, na prática, não há escolha. A miséria esvazia por completo a ideia de democracia. Não há democracia que se sustente onde as pessoas passam fome.

Em que pese a brutalidade evidente, nos jogos de Round 6 impera a democracia – e talvez seja esta a parte mais cruel da história. Impõe-se às vítimas a inverdade de que elas estão lá por escolha: vivemos em uma democracia, afinal.

A carnificina é exposta em contraste a um ambiente lúdico, limpo, organizado, democrático, enfim. E isso me lembra que em um Estado necropolítico, mata-se sob o manto da legalidade. Matam e chamam isso de “imunidade de rebanho”, “inflação” ou “crise”.

A barbárie ritualizada na série está na TV todos os dias, não apenas em programas como o de Luciano Huck, mas também nos telejornais.

Round 6 nos deu uma má notícia: nós estamos vivendo uma distopia.