Exclusivo: chats inéditos mostram que Dallagnol sabia que “Fundação Lava Jato” era suspeita

Atualizado em 10 de dezembro de 2021 às 18:45
Deltan Dallagnol assina a ficha de filiação ao Podemos
Deltan Dallagnol assina a ficha de filiação ao Podemos — Foto: Reprodução/Youtube

“Tem coisas meio inexplicáveis mesmo”, admitiu Deltan Dallagnol, em 7 março de 2019, para seus colegas procuradores, sobre o acordo firmado entre o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e membros da chamada “República de Curitiba”. 

Cumprindo o acordo, a Petrobras havia transferido, poucas semanas antes, R$ 2,5 bilhões para uma conta no Brasil, que deveriam ser geridos por uma “fundação” a ser controlada, ainda conforme o documento, pelos próprios procuradores da Lava Jato. 

Um diálogo inédito obtido pelo portal Diário do Centro do Mundo, junto aos arquivos da Spoofing, operação da Polícia Federal, revela que Dallagnol tinha consciência de que o acordo que ele havia assinado com autoridades americanas era suspeito, e que trazia, segundo suas próprias palavras, “coisas meio inexplicáveis”. 

Deltan reclama de críticas à “fundação”, mas admite que “tem coisas meio inexplicáveis no acordo mesmo”

Essa reportagem é a décima primeira de uma série, sempre com diálogos inéditos da operação Spoofing. Você pode ler mais aqui: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10.

Dallagnol estava correto sobre o caráter suspeito do acordo. 

Pena que ele não tenha visto isso como um problema para levá-lo adiante. No mesmo diálogo, ele combina estratégias para lidar com as denúncias que começavam a aparecer na imprensa. 

O site Migalhas havia desvendado a picaretagem: o acordo original assinado com o governo americano não previa criação de fundação alguma, tampouco que os recursos fossem controlados por procuradores de Curitiba. 

O documento original determinava tão somente que os recursos fossem transferidos para “autoridades brasileiras”, aí entendido, naturalmente, a União. 

Detalhe importante: o estranho “acordo” do MPF com autoridades americanas havia sido homologado, em 25 de janeiro de 2019, pela então substituta de Sergio Moro na 13ª Vara de Curitiba, Gabriela Hardt, a mesma juíza que, sob pressão dos procuradores, condenaria às pressas o ex-presidente Lula, num dos processos que, mais tarde, seriam anulados pelo STF.  

Na conversa em questão, o procurador-chefe da Lava Jato, que recentemente abandonou o serviço público e agora tenta a vida como youtuber, palestrante e político, sugere ignorar reportagens críticas à fundação. Dallagnol ainda acreditava que a picaretagem poderia passar despercebida do grande público se as críticas ficassem restritas a veículos jornalísticos de menor audiência. 

Quando constata que “veículos grandes” também estavam interessados no assunto, Dallagnol muda a estratégia, e orienta os colegas a “descer a lenha nas críticas”. 

No mesmo diálogo, Dallagnol lista as principais empresas investigadas pela Lava Jato e as respectivas multas definidas em acordos de leniência assinados com o MPF, dando a impressão que olhava para aqueles valores como outras minas de ouro para financiar seus projetos.

Em março de 2019, todavia, a Lava Jato não possuía mais a glória de outrora, e a repercussão do acordo foi tão profundamente negativa, que a força-tarefa desistiu do ambicioso sonho de gerir uma fundação bilionária, voltada à “formação de lideranças”. Dias depois, o próprio MPF pede para suspender a iniciativa. 

Em setembro do mesmo ano o Supremo Tribunal Federal enterraria o assunto, determinando que o dinheiro fosse transferido à União. 

Em seu despacho, o ministro Alexandre de Moraes faz críticas duras à tentativa de se criar a “Fundação Lava Jato” com dinheiro da Petrobras, dizendo que o projeto “desrespeitou os preceitos fundamentais da Separação de Poderes, do respeito à chefia institucional, da unidade, independência funcional e financeira do Ministério Público Federal e os princípios republicano e da legalidade e da moralidade administrativas, pois ambas as partes do acordo não possuíam legitimidade para firmá-lo, o objeto foi ilícito e o juízo era absolutamente incompetente para sua homologação”.

Em linguagem popular: foi picaretagem.

E a picaretagem não parou por aí. 

Em setembro de 2019, o site Conjur publicou reportagem mostrando que a Lava Jato trabalhou abertamente contra a Petrobras e a favor tanto do governo como de acionistas americanos, já cobiçando um pedaço da multa que a empresa poderia pagar. 

A Lava Jato instrumentalizou a justiça dos EUA com informações que levaram a Petrobras a pagar uma indenização de US$ 2,95 bilhões a acionistas minoritários americanos. No câmbio de hoje (10/dez/2021), esse valor corresponderia a R$ 16,5 bilhões. 

Como parte do acordo, o governo americano faria o jogo que interessava a Dallagnol, aplicando uma outra multa a Petrobras, no valor de US$ 853,2 milhões, da qual 80% iria ao Brasil, para a conta da tal “Fundação”, a ser criada em Curitiba e controlada pelos próprios procuradores da Lava Jato. Os outros 20% iriam para o governo americano. 

Esses 80%, ou US$ 682 milhões, corresponderiam, ao câmbio de hoje, a R$ 3,8 bilhões. 

Metade desse dinheiro iria para a “Fundação Lava Jato”, também apelidada de “Fundação Dallagnol”, e a outra metade ficaria reservada para o pagamento de ações individuais ou coletivas contra a Petrobras. Mas se não houvesse ação nenhuma em dois anos, ou se as ações não fossem bem sucedidas, essa metade também seria destinada integralmente à fundação. 

Diversos diálogos da operação Spoofing revelam que os procuradores da Lava Jato partilhavam, ilegalmente, informações confidenciais de empresas e cidadãos brasileiros, com órgãos de inteligência dos Estados Unidos e outros países. 

Em mensagem de 17 de maio de 2016, por exemplo, o chefe da Lava Jato, Deltan Dallagnol reage com uma risada (“kkkk”) ao comentário de seu colega, de que o repasse de informações confidenciais de empresas nacionais a autoridades americanas poderia “quebrar” esses grupos.

O procurador Orlando Martello diz: “acho que os americanos quebram a empresa [Odebrecht]”. “Kkkk”, reage Deltan
Entretanto, o material mais estarrecedor da operação Spoofing sobre esse tema é um áudio do próprio Deltan Dallagnol, em que ele admite, a um colega da Lava Jato, que a força-tarefa deveria se aliar ao Departamento de Justiça (DoJ) dos Estados Unidos contra a Petrobras. 

E por quê? 

Porque era a melhor maneira de obter o cobiçado dinheiro para a… fundação.

O áudio de Dallagnol pode ser ouvido e baixado aqui

O chefe da Lava Jato é objetivo. Como a legislação brasileira protegia os interesses da Petrobras, até porque ela era considerada vítima de todo o processo, a solução de Dallagnol foi ajudar a condenar a estatal na justiça americana. 

 “Vamos retomar aquele texto do DoJ” para dar “destinação [dos recursos] pra fundação”. 

A Petrobras não foi a única vítima da cooperação ilegal entre a Lava Jato e governos estrangeiros. 

A Lava Jato aplicou o mesmo modus operandi a outras empresas: subsidiou o Departamento de Justiça com informações colhidas no Brasil, e trabalhou para maximizar as multas cobradas pela justiça americana, com o intuito de receber uma parte dos recursos. Em retribuição ao auxílio luxuoso dos procuradores brasileiros, a justiça americana foi “generosa” com a Lava Jato.

Essa generosidade com dinheiro alheio não foi sequer exclusiva da justiça americana. O então juiz Sergio Moro também foi compreensivo com as necessidades financeiras da República de Curitiba. 

Um dos diálogos vazados da operação Spoofing, de 5 de junho de 2018, mostra o procurador Januario Paludo informando seus colegas que Sergio Moro “liberou 4,9 milhões [de reais] para aquisição de equipamentos para a PF, a partir das leniências da Camargo Correa e Andrade Gutierrez”. 

Januário Paludo, procurador da Lava Jato, informa que Sergio Moro, juiz da 13o Vara de Curitiba, liberou R$ 4,9 milhões, provenientes de acordos de leniência firmados com empreiteiras, para a PF local

A Odebrecht é outro exemplo. A empresa, que sustentava mais de 150 mil empregos diretos no Brasil, foi escorchada pela justiça americana com a maior multa já cobrada de uma empresa privada na história dos Estados Unidos. 

Além do acordo com a Lava Jato, que obrigou a Odebrecht a pagar uma multa de R$ 3,8 bilhões, o grupo também foi condenado pela justiça americana a desembolsar uma indenização de US$ 2,6 bilhões (quase R$ 15 bilhões pelo câmbio de hoje) a governos dos EUA, Suíça e Brasil. 

Inúmeros diálogos da Spoofing mostram integrantes da Lava Jato oferecendo informações à justiça estrangeira por fora dos meios convencionais. E hoje se sabe que a operação trabalhou com delações forjadas ou arrancadas sob métodos ilegais e antiéticos. Em reportagem anterior desta série mostramos que Dallagnol mandou “rescreever” a delação de Pedro Barusco, ex-presidente da Sete Brasil, para que seu depoimento incluísse o PT. Em outra matéria mostramos que o mesmo Dallagnol mandou que a delação forjada de Barusco fosse “copiada” para depoimentos de outros investigados.

Ou seja, a Lava Jato montou acusações com base em argumentos frágeis, ou flagrantemente falsos, a maioria das quais já foram ou estão sendo anuladas pela justiça brasileira, e ao mesmo tempo usou essas acusações mal ajambradas para ajudar governos de outros países a estrangular nossas principais empresas de engenharia e petróleo. 

Recentemente, a opinião pública ficou chocada ao saber do caso de uma mulher que ficou presa por mais de 100 dias, numa prisão em Minas Gerais, sob acusação de furtar… água. 

O caso foi parar no STF, e o ministro Alexandre de Moraes, no dia 17 de novembro de 2021, determinou que ela fosse posta em liberdade. 

É impressionante como a justiça brasileira é tão severa em casos absolutamente insignificantes, como furto de água, e leniente, ou conivente, em situações como a de Deltan Dallagnol e seus colegas da Lava Jato, que trabalharam criminosamente contra os interesses nacionais, de olho num interesse espúrio, mesquinho: botar a mão em bilhões de reais pertencentes à Petrobras, a joia da coroa da economia brasileira. 

Outro lado

A reportagem está tentando entrar em contato, há dias, com o ex-procurador Deltan Dallagnol. Mas ele não responde nossas mensagens. O espaço está aberto para suas manifestações.